segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Perdão

Ele era das pessoas com quem eu mais me divertia pura e simplesmente conversando. Eu adorava aqueles almoços, de hora e meia quando deveria ser só uma hora. Havia sempre tanto para dizer, coisas para contar, assuntos para reflectir, tantas gargalhadas. Não havia muita gente no refeitório que falasse e risse tanto como nós.
Um dia ele foi promovido. Passou a chefiar uma área com crescente importância, sobre a qual estavam os olhos de gente grande na empresa. Os almoços começaram a escassear. E os temas de conversa afunilaram-se até já só sobrar aquela área, os problemas da área, os dilemas da área, a evolução da área, os feitos da área, os elogios à área. Se de início achei natural, com o passar do tempo comecei a sentir que havia ali já uma vaidade exagerada, os mesmos elogios contados repetidamente; que no meio do cansaço havia um vício que lhe roubava o tempo com amigos e família, sem que ele colocasse travão.
Continuámos com um ou outro almoço esporádico. Mas se eu esperava que esses poucos pudessem ser um nada como os de antigamente, enganava-me, e a conversa começou a deambular entre a área e o silêncio. Por vezes chamava-me à sua sala para pedir algumas opiniões, algumas pequenas ajudas a nível de trabalho. Eu ia. Porque era sempre uma forma de tentar entrar em contacto com alguém que afinal já tinha desaparecido.
Mas ainda assim, nada me faria adivinhar aquele dia. Quando, preparando-nos para uma reunião com dois Directores, eu falei-lhe numa ideia. E no dia seguinte, em plena reunião, ele adiantou-se ao meu inspirar para falar e apresentou a ideia como sendo dele.
Acho que praticamente já não ouvi nada a seguir àquilo. Não importa se a ideia tinha um milímetro ou um quilómetro de importância. Qualquer coisa estilhaçou cá dentro. Porque há poucas pessoas de quem podemos afirmar que nunca fariam tal coisa. E ele era um deles.
Desde aí já deve ter passado quase um ano. Nunca mais houve um almoço. Nunca mais houve um telefonema profissional que era sempre também um prazer. Achei que não havia nada a dizer nem nada a calar. Criei mais uma relação profissional pacífica e impessoal.
Interroguei-me muitas vezes até que ponto vale a pena sacrificar uma amizade por um minúsculo e efémero brilharete perante um superior. Como não tinha resposta, deixei o tempo levar tudo.
Mas ontem aconteceu. “Temos que combinar um almoço”, disse ele.
Um almoço. O meu “’Tá bem” deve ter sido elucidatório da minha dúvida.
E agora interrogo-me. Até que ponto vale sacrificar uma amizade, por causa de um erro.
A traição da confiança é das poucas nódoas impossíveis de remover. Mas se não se pode remover, poder-se-á aceitá-la e saber viver com ela? Poder-se-á perdoar?

Sempre achei o perdão um dos gestos mais nobres do ser-humano. De que só um espírito mais elevado é capaz. É verdade que a ofensa não foi grande. Mas acho que a mágoa se mede não tanto pelo acto como por quem o realizou. Todos os dias considero aceitar aquele almoço. Serei capaz? É que ainda não sei.

2 Comments:

  • Bem, a última que me fizeram do género, e não foi asism há tanto tempo levou a que a relação de amizade se saldasse num extremo profissionalismo, maisnada. Acabaram as conversas de corredor, as piadas de secretária, as confid~encias laborais. Agora há o comprimento habitual, meia dúzia de palavras e a ideia que afinal há gente que tem uma capacidade de fazer mal aos outros estranhíssima e que nem percebe como é mau. Enfim!

    By Blogger Firehawk, at 10:28 da tarde  

  • O mundo do trabalho é uma selva, mesmo mas mesmo uma selva

    By Blogger PegadasDigitais, at 8:49 da tarde  

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