Um dia
... vou perceber porquê. Fez ontem dois meses que dei por concluída a decisão menos minha de toda a minha vida. Até então eu tinha sido um peão prudente, um paciente (de paciência, não de doente) resignado, um transportado pacífico, um viajante treinado. Desenvolvera já capacidades extraordinárias. Desligar a função olfacto quando necessário, manter uma posição fixa durante vários minutos, equilíbrio sem mãos durante curvas, alternar entre o ouvido tísico e de avó em poucos segundos, ignorar os raios que saiem das nuvens cinzentas dos outros, resistência total a malas e chapéus-de-chuva, enfim, toda uma panóplia de capacidades aperfeiçoada durante anos.
De um momento para o outro, tudo desapareceu. Perdi há muito a conta das vezes que ouvi “Um dia tens que...”, “Está na altura de...”, “Está a fazer-te falta...”, “É muito mais prático...”, “Até fulano já tem...” Anos de impiedosa lavagem cerebral, quase como se fosse anormal eu não ter tomado essa decisão, como fizeram todos os outros, há já tanto tempo. Como se fosse qualquer coisa ligada à nossa independência, ao nosso amadurecimento. E assim, há dois meses atrás, pus termo à lavagem, e sequei todas as bocas palpiteiras. E findou-se o estádio passageiro. Deu-se início ao estádio... uuiii.
Todo um mundo novo se abriu para mim. No meio de uma imensidade de sinais verticais, luminosos, setas de desvio, de selecção, e sei lá mais o quê, descobri um mundo de caras feias, sobrolhos franzidos, braços levantados, mãos extraordinariamente expressivas. Um mundo onde é desconhecida a paciência da espera, um mundo onde toda a gente quer o mesmo lugar ao mesmo tempo, onde não entra um de cada vez, onde todos querem ser o primeiro. Se me livrei das bocas palpiteiras, agora tenho à discrição as bocas arreganhadas em insultos pouco imaginativos e raras vezes com razão.
E em poucos dias, as capacidades aperfeiçoadas durante anos sofreram um violento abalo...! Demorei vários dias até perceber que, agora que mudei de mundo, se pretendo sobreviver nele, tenho que desenvolver uma outra capacidade. O autismo automóvel. A carroçaria guarda agora o meu mundo, impermeável ao outro lá fora. Aquelas coisas com rodas são elas mesmas seres, uns bons e outros maus, dos quais eu tenho que me defender a todo o custo.
E assim passaram a ser as minhas manhãs, as minhas tardes. Ainda assim, sinto que começo a chegar ao limiar da resistência, àquele ponto de break-even entre as vantagens e as desvantagens. Mas por vezes as saudades ainda apertam, os equilíbrios, os cheiros, as esperas, os chapéus-de-chuva. Tudo ainda tão fresco. Tudo ainda tão tentador. Especialmente quando há mais uma batalha vencida e se está meia-hora para estacionar, termo até há dois meses desconhecido. Porque os “seres” que me transportavam tinham uma vantagem brutal: cumpriam a sua tarefa e iam-se embora sozinhos.
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