quinta-feira, 22 de abril de 2004

Mosquitos e budas


Não é natural. Mas eu pensava que sim.

Não existe uma redoma onde resvalam os desagrados. Não existe uma escada por onde fugir das pedras dos outros. Não existe uma varanda de onde ver a vida de cima. Estamos embrenhados, bem lá no meio, e não temos manual de instruções nem software programável. Mas creio que eu pensava que sim.

O pianista pratica até que a técnica se transforme em talento. Será que o espírito também é treinável? Será possível levá-lo a reagir na perfeição? Incutir-lhe técnicas até que pareçam a nossa natureza? Até que sejam a nossa natureza?

Um dia um mero mortal toma a decisão e passa a agir como um ser perfeito. Passa a controlar a raiva, a revolta, o mau-humor, as ambições, os desejos, as frustrações, as exigências, até que tudo isso se desvanece, quem sabe até desaparece. Passa a amar os animais, as flores, as pessoas, o céu e a chuva. Passa a compreender todos, a ser magnânimo, liberal, generoso, altruísta. Em suma, perfeito.

E eu acreditava. Acreditava que era possível ser maior. Até ao dia em que se cruzou no meu caminho um destes meros mortais feito perfeito. E se a sua súbita nova filosofia de vida é um teste à resistência de alguém, será sim à paciência daqueles que continuam a ser meros mortais. Aquela pessoa, desmesuradamente ambiciosa, de acessos de raiva, de personalidade instável, de humor flutuante, passou de um momento para o outro a não comer carne, a não beber álcool, a salvar mosquitos da minha alface e aranhas do ralo da banheira, passou a compreender todos e a amar todos. Pior, a desculpar todos das suas atitudes erradas, no pressuposto de que entende as suas razões.

E se eu acreditava na veracidade desta filosofia de vida, não mais. Esta “sabedoria” não me parece agora mais do que a arrogância dos pretensamente iluminados perante os comuns mortais sucumbidos às pequenas mesquinharias e sentimentos humanos. Eu não quero que tenham pena de mim, que tenham condescendência pelas minhas falhas nem compaixão pelos meus erros, como se eu não tivesse chegado ao nível superior, como se eu, pequenina, não pudesse ser como eles, como se fizesse parte de uma casta inferior.

Coragem não é abafar o que somos, é assumir o que somos. A maior coragem é admitir que não somos perfeitos e que, pior, nunca seremos. É aceitar que vai haver alturas em que seremos injustos, em que seremos maus, e que não poderemos contar com mais do que o perdão dos outros.

Esta filosofia serve, é claro, como linhas de orientação. Mas parece-me hoje a negação forçada ao que está na essência humana: sermos ao mesmo tempo bons e maus. O verdadeiro desafio, a verdadeira coragem é viver com as falhas. E assumi-las como parte do que nós somos e do que os outros são. Porque no meio daquela encenação, a máscara acaba por cair e vislumbrar-se o verdadeiro espírito. Não é pela técnica que deixam de sentir, de amar, de odiar, de ambicionar, de esquecer, de competir, de invejar. Não é por princípios impostos que abdicam do carro, da casa, das compras, das roupas, dos doces, das vaidades. E se acham que salvar mosquitos da salada lhes prova a bondade, perguntem-lhes o que acontece a todos aqueles que morrem violentamente contra os pára-brisas dos seus carros.