domingo, 25 de abril de 2004

Pequenas grandes coragens


Era Sábado à noite. Mas aquela sua febre já durava há anos, talvez desde que se lembrava de si mesmo.
Era a primeira vez que ia fazer aquilo. Estava nervoso. Nervoso e sozinho. Mas estava ainda mais cansado. Cansado de ver os outros – e ele sem coragem.
Enfiou os chinelos nos pés, arregaçou as pernas das calças, meteu os óculos na sua cara de puto, e obrigou o corpo gorducho a sair de casa.
O caminho até lá pareceu três vezes mais longo, mas passou-se sem hesitações, com a determinação nos passos e a expectativa no coração.
Foi sozinho que entrou. Era Sábado à noite e o bar estava cheio. À espera dele não havia nenhum aceno, nenhum sorriso, nenhuma cara conhecida, nenhuma mesa de amigos, nenhuma palavra de incentivo.
Ainda assim, atravessou o bar como se estivesse vazio e foi dar o seu nome e a música que há anos só as paredes do quarto o ouviam cantar. E sentado numa mesa sozinho, sentou o corpo gorducho e esperou. Os minutos arrastaram-se mas o momento chegou depressa.
Metade das pessoas no café nem ouviu chamar o seu nome. Das que estavam de costas, uma ou duas viraram-se um instante para ver quem se seguia.
Eu era das que estava de frente. Aquele pequeno quadrado que servia de palco elevava-o uns imensos poucos centímetros acima do resto. E expunha-lhe a cara de puto por trás dos óculos, o corpo gorducho ainda não feito homem, as calças arregaçadas e os chinelos nos pés.
Aquele miúdo, com aquele aspecto, ia mesmo cantar, à frente de toda aquela gente bonita e bem vestida, e logo aquela música?
Sem o conhecer, receei por ele, e pelo ridículo por que iria passar. Eu tinha a certeza. Mas agora estava ali e era tarde demais.
A música começou. E quando a voz se espalhou pelo ar, pelas pessoas, pelas mesas, a cara de puto, as calças arregaçadas, os óculos, o corpo gorducho e desajeitado, tudo desapareceu. E viu-se um homem, uma coragem, um talento. A única coisa desagradável que vi foi o meu preconceito.
Maldito mundo em que aprendemos a julgar pela imagem. Quanto talento permanecerá sempre a um canto esquecido, porque o exterior não lhe corresponde?
Vi-o voltar sozinho para a mesa. Toda a gente aplaudiu mas ninguém lhe disse nada. Eu também fiquei em silêncio, a dar graças por continuar a haver quem tenha estas pequenas grandes coragens. Eu não a tive para lhe ir falar. Mas incumbi-me a difícil tarefa de passar a não ver uma pessoa antes de a conhecer.
Obrigada ao rapaz gorducho.