Cheiro de bebé
Ser mulher para ela nunca tinha sido assim tão importante.
Os anos foram passando, e ela vivia aceitando ser adulta, e tudo o que isso acarreta, o trabalho, as responsabilidades, as toneladas de papel de que se passa a viver rodeado na carteira, nas gavetas em casa, no emprego, o auto-controlo, o realismo, a rotina.
Mas ao mesmo tempo permitia-se viver na pequenina certeza de que algures nas Caraíbas estava um barco de piratas onde um dia ainda ia embarcar, de que algures numa galáxia longínqua estava uma nave de batalha onde ela ainda venceria o mal, algures debaixo da terra estava escondido um portal que a levaria ao Egipto antigo, que algures numa terrinha do outro lado do oceano estava um cientista louco que a levaria ao futuro num carro voador, que algures numa ilha do pacífico iria descobrir um mundo pré-histórico regressado à vida, que por remota que fosse a possibilidade, um dia teria um encontro imediato com um ser de outro mundo.
E assim vivia, na sua inofensiva espécie de complexo de Peter Pan. Porque o mundo não podia ser assim tão cinzento, porque a vida não podia ser assim tão previsível e efémera. Devia haver lugares onde tudo fosse colorido, emocionante, e onde os finais fossem felizes. O mundo real fazia-lhe confusão. Não se identificava com quase nada do que via, era como se fosse de outro planeta, de outro tempo. Mas como era aqui que tinha vindo parar, adaptara-se. E num mundo em que quase tudo desilude, quase tudo se perde, ela escondia para si os lugares secretos, onde a imaginação não se abafa mas se vive e concretiza, e onde um dia, quem sabe, haveria de ir.
E o tempo foi passando, impondo aquelas coisas que se esperam da vida. Mas ela não mudou, ela não o sentiu passar. Esperava que o tempo lhe trouxesse as vontades que se esperam de uma mulher. Mas elas não vinham. Tinha a sensação de estar a ser empurrada para aquele horizonte que sempre tinha estado tão, tão longe. Não era suposto vir um dia a sua natureza de mulher à superfície? Onde estava ela? A criança que escondia e a mulher que parecia lutavam dentro dela, e ela não via maneira de as duas poderem ser uma só. Chegada àquele horizonte, uma delas teria que ficar para trás. E ela não saberia escolher.
Então, um dia, numa manhã de Primavera, o sol a convidar à felicidade, permitia-se os seus minutos diários de fantasia, quando de repente... aquele cheiro. Do ar que inspirou directo à alma. Despertou-lhe uma essência qualquer, que nunca tinha sabido ter dentro de si. Uma coisa muito diferente dos sonhos, algo primário, natural. Olhou sabendo já o que ia ver. O cheiro vinha daquele pequeno corpo irrequieto, das pequeninas mãos, dos grandes olhos atentos e curiosos, das palavras atabalhoadas e vivas, do sorriso puro. Não foi preciso mais que um instante para compreender. E quando pensou na criança e na mulher... quem sabe afinal elas tenham sempre coabitado.
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