quinta-feira, 8 de julho de 2004

Tempo animal


Tenho saudades do tempo em que não pensava nas coisas. Do tempo em que encarava a vida como um animal, sem questionar as razões das coisas, sem achar que os meus actos faziam diferença ou deixavam de fazer. Naquele tempo, tudo acontecia porque sim, porque era assim. A vida era apenas uma fluência inevitável, cheia de expectativas, interminável, e eu passava por ela, ou ela por mim, sem que eu tivesse consciência dela, nem da passagem do tempo. Era tudo tão mais fácil. A busca pelos meus sonhos era óbvia e inquestionável. Os meus medos eram sentidos mas não pensados. E serviam-me de impulso! As minhas lutas aconteciam sem dar por elas. Agia sem ter que fazer mil e um cálculos antes. Falava sem ter que saber primeiro se ia magoar ou elogiar. Era tão mais fácil. E eu tenho saudades. Não sentia competição. Os desafios eram naturais, e encarava-os sem perguntas. Não duvidava se era capaz. Não queria saber se alguém seria melhor do que eu. Não tinha medo.
Os anos trouxeram isso: o medo. O medo de não conseguir, o medo de magoar, o medo de parecer o que não sou, o medo de errar, o medo de esquecer, o medo de falhar, o medo de perder, o medo de sofrer, o medo de ser ultrapassada, o medo do risco, o medo. A vida vai-se tornando mais séria, e é isto com que afinal temos que lidar. Porque aprendemos, algures que eu ainda não descobri onde, que antes de qualquer coisa, temos que raciocinar, temos que prevenir, temos que prever, temos que anteceder tudo. Pensamos. Pensamos nas coisas todas. Há quem passe a vida a sofrer por antecipação, por causa disso. Há quem nunca arrisque nada, por causa disso.
Eu confesso, ainda não descobri a utilidade de pensar nas coisas. E se o medo nos serve de alerta, também nos serve de empecilho. Medo do quê, raios? Medo porquê? Só se vive uma vez!
Eu cá tenho saudades do tempo em que não pensava. Agia. Era eu. Só há uma coisa de que não tenho medo. Voltar a ser como naquele tempo animal. Que saudades!