segunda-feira, 24 de maio de 2004

Pano branco


Debaixo daquele pano estava tudo. Foi apenas um instante, um vislumbre, um segundo. Debaixo daquele pano estavam sonhos que não chegaram a acontecer, debaixo daquele pano estavam sentimentos que nunca chegaram a ser, debaixo daquele pano estavam sorrisos que nunca ninguém chegou a ver, tantas palavras que nunca ninguém chegou a ouvir, tantos beijos que alguém nunca chegou a receber, amor que alguém nunca chegou a ter. Debaixo daquele pano branco ficaram tantos dias, tantas horas e minutos nunca chegados a existir. Ficou a certeza de tanto tempo por viver. Ficou um futuro que nunca foi. Ficou o lugar aonde nunca chegou. Ficou a eterna espera de quem nunca mais voltou a vê-lo. Ficou a alegria de gente que a perdeu para sempre. Ficou a ilusão de ser imortal.
Bastou um segundo. E enquanto os meus olhos passavam num vislumbre sobre aquele pano branco, fina barreira entre mim e o fim que encobria, e o meu corpo se contraía num arrepio convulsivo, eu vi tudo o que ficou debaixo daquele pano branco. E os meus olhos encheram-se de lágrimas pelo nada que ali ficou. Debaixo daquele pano branco. Num segundo era o futuro, no outro um passado perdido. Num, uma vida, no outro um corpo desfeito, debaixo de um pano branco.
Ontem, na A22, pelas 17h20, enquanto eu piscava os olhos, enquanto tu bocejavas, enquanto ela sorria, enquanto eles se beijavam, mais um jovem extinguiu a vida, porque escolheu viver como imortal. Ele nunca chegou a saber que estava enganado. Mas a prova ficou ali, para todos nós vermos, debaixo daquele pano branco.