quarta-feira, 9 de março de 2005

Vestígio de mulher

Da mulher arrogantemente segura, já pouco resta. Da confiança e da presunção há poucos vestígios. Todos os dias a vou vendo passar, a cada dia um centímetro mais abaixo que no dia anterior. É uma gigantesca bandeira que insiste em passar à minha frente, a lembrar que tudo o que temos é emprestado, e um dia, de repente, vem alguém tomá-lo de volta.
Cada vez que aqui passa, deixa-me mais umas palavras amargas, mais um olhar avermelhado, mais uma nuvem negra, mais uma sensação de quebra, mas uma ameaça silenciosa de que lhe apetece desistir.
Eu não tenho nada inteligente para dizer. Ainda há dias eu desejava ter um pouco a vida dela. Ter um marido como ela, ter uma filha como a dela, comprar uma enorme casa nova como ela. E o carro novo, e o negócio que eu gostava de ter. De um dia para o outro a traição levou-lhe tudo.
“Eu tenho que cuidar da minha filha. Quem é que cuida de mim?”
Está no fundo. A mulher amada transformou-se na mulher abandonada. O homem amado transformou-se no homem que odeia. A filha nascida do amor transformou-se na filha que é a semente da guerra.
E ela atormenta-se - porque não pode evitá-lo - a imaginar tudo. Todos os momentos de intimidade sem ela saber, todos os enganos, todas as mentiras. A sua vida era uma fachada e ela não sabia. Vivia num cenário, e pensava que era o mundo real. A vida côr-de-rosa trocou-se por uma vida de obsessão, dos movimentos dele, do que ele diz, do que ele faz, do que ele estará a fazer, do que ele se recusa a fazer. E agora o golpe final, ter que abdicar de horas com a sua filha, para as dar à mulher que lhe tomou o lugar.
Pois é. O que tenho visto passar aqui não é uma mulher. É a pergunta sem resposta “Como é que ele pôde fazer-me isto?”. É a busca desesperada por uma justificação. É a expectativa de palavras de consolo para o que não tem consolo possível. Aquele olhar é de tal forma angustiante que não consigo fixá-lo por muito tempo.
Fico a pensar que só deve trair quem realmente nunca foi traído, porque se soubesse a dor, com certeza nunca a causaria a ninguém...
Espero que o tempo lhe passe depressa, porque é o único que relativiza, que esmorece. Apagar, acho que nunca.
E que esta bandeira sirva para lembrar que nada é garantido. E que o grande desafio da vida é, mesmo sabendo disso, continuar sempre a apostar.