A sério
Às vezes dizem-me para não levar as coisas muito a sério. Ignorar em vez de matutar, rir em vez de me chocar, não reagir em vez de me zangar. Ora eu sempre me convenci que essa capacidade estava reservada a alguns, poucos, de espírito com certeza mais elevado. Mas depois de viver umas décadas, os olhos finalmente abrem-se, e à perspectiva cristalina da maioria dos que nos rodeiam, percebemos que isto de viver de olhos bem abertos encandeia demasiado, e temos que passar a usar óculos com lentes de protecção raios ultra-sério.
E assim foi. De há uns meses para cá, passei a pô-los logo pela manhã e a retirá-los só antes de fechar os olhos para dormir. Parecendo que não, isto requer alguma prática, porque os óculos nos ficam largos e nos caiem muito facilmente da cara. Por vezes dá uma vontade louca de os atirar pela janela e partir a loiça toda. Mas penso que posso dizer que finalmente aprendi o equilíbrio (não sei até quando) e de facto a coisa resulta. Relativizar. Esta é a palavra-chave. Este é o efeito destas lentes. As pessoas que fumam no bar da Unidade de Cuidados de Saúde já não me indignam com a mesma intensidade; o desespero de bajulação da colega da frente às chefias já não me choca da mesma forma, os palhaços que se atiram à nossa frente nas estradas já não me provocam a mesma irritação. Consegui eliminar assim de tudo, um pouco do factor surpresa da natureza humana, do factor choque, do factor revolta. É excelente não perder tempo de vida com tretas!
Mas... ninguém me avisou dos efeitos secundários dos óculos. Visão nublada. É que, se funciona sobre as coisas más, também funciona sobre as boas. E assim, se as coisas más não parecem agora tão más, as boas também parecem ter perdido um pouco o brilho... Pois é, se aprendemos a ser controlados, isso reflecte-se em tudo. Estas cabeças não são assim tão programáveis. E quando agora chego a casa e ouço a pergunta “Então, que aconteceu hoje no teu dia?”, os meus lábios pronunciam “Nada de especial.” Relativizei.
É, pode ser tranquilo viver no equilíbrio. Mas não tem piada nenhuma. Pode ser o meu pequeno mundo, sem grande interesse à humanidade, mas tinha intensidade. E tenho medo que, ao viver assim, as minhas melhores peças, as que me faziam rir à gargalhada ou chorar como um bebé, enferrugem, e um dia que eu queira, não consiga voltar a pô-las a funcionar.
Talvez eu prefira rir a valer de vez em quando do que nunca me zangar, ou nunca chorar. Talvez prefira permitir que a vida continue a surpreender-me, ainda que muitas vezes pela negativa. Já que aqui estou, não será afinal melhor deixar-me viver acordada, e não anestesiada?
Talvez ainda venha a mudar de ideia. Ou talvez ainda venha a aprender a usar os óculos só quando é preciso, num tira e põe constante. Embora não creia que já tenha conhecido alguém realmente capaz de o fazer.
É. Aposto que um dia destes os óculos ainda vão fora. Antes que me esqueça de viver. O mundo baço não tem piada nenhuma.
E assim foi. De há uns meses para cá, passei a pô-los logo pela manhã e a retirá-los só antes de fechar os olhos para dormir. Parecendo que não, isto requer alguma prática, porque os óculos nos ficam largos e nos caiem muito facilmente da cara. Por vezes dá uma vontade louca de os atirar pela janela e partir a loiça toda. Mas penso que posso dizer que finalmente aprendi o equilíbrio (não sei até quando) e de facto a coisa resulta. Relativizar. Esta é a palavra-chave. Este é o efeito destas lentes. As pessoas que fumam no bar da Unidade de Cuidados de Saúde já não me indignam com a mesma intensidade; o desespero de bajulação da colega da frente às chefias já não me choca da mesma forma, os palhaços que se atiram à nossa frente nas estradas já não me provocam a mesma irritação. Consegui eliminar assim de tudo, um pouco do factor surpresa da natureza humana, do factor choque, do factor revolta. É excelente não perder tempo de vida com tretas!
Mas... ninguém me avisou dos efeitos secundários dos óculos. Visão nublada. É que, se funciona sobre as coisas más, também funciona sobre as boas. E assim, se as coisas más não parecem agora tão más, as boas também parecem ter perdido um pouco o brilho... Pois é, se aprendemos a ser controlados, isso reflecte-se em tudo. Estas cabeças não são assim tão programáveis. E quando agora chego a casa e ouço a pergunta “Então, que aconteceu hoje no teu dia?”, os meus lábios pronunciam “Nada de especial.” Relativizei.
É, pode ser tranquilo viver no equilíbrio. Mas não tem piada nenhuma. Pode ser o meu pequeno mundo, sem grande interesse à humanidade, mas tinha intensidade. E tenho medo que, ao viver assim, as minhas melhores peças, as que me faziam rir à gargalhada ou chorar como um bebé, enferrugem, e um dia que eu queira, não consiga voltar a pô-las a funcionar.
Talvez eu prefira rir a valer de vez em quando do que nunca me zangar, ou nunca chorar. Talvez prefira permitir que a vida continue a surpreender-me, ainda que muitas vezes pela negativa. Já que aqui estou, não será afinal melhor deixar-me viver acordada, e não anestesiada?
Talvez ainda venha a mudar de ideia. Ou talvez ainda venha a aprender a usar os óculos só quando é preciso, num tira e põe constante. Embora não creia que já tenha conhecido alguém realmente capaz de o fazer.
É. Aposto que um dia destes os óculos ainda vão fora. Antes que me esqueça de viver. O mundo baço não tem piada nenhuma.
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