segunda-feira, 1 de novembro de 2004

Linha entre dois pontos

O comboio galgava as terras, como um corte longitudinal no mundo, intrometendo-se em tudo, atravessando campos e bosques, aldeias e cidades, dividindo umas, unindo outras, experimentando em poucos minutos chuvas torrenciais e céus de nuvens brancas e cor-de-rosa. Criando ventos que abanam os ramos quase nús das árvores, levantam as abas das gabardinas dos homens e revolvem os cabelos das mulheres. Fazendo ladrar os cães, parar os carros, acenar as crianças.
E aquilo tudo era para ela. Lá dentro, ela assimilava o mundo em instantâneos. Uma mota numa estrada paralela aos carris, um quintal desarrumado, vacas num pasto, a casota de um cão, um campo verde pintalgado de ovelhas, os tons luminosos de um arco-íris, gente escondida debaixo de chapéus de chuva, a senhora da passagem de nível de bandeirinha erguida. Um substituía o outro em décimos de segundo, a maior parte sem a possibilidade de ela guardar na memória.
Ela atravessava o mundo naquela cápsula veloz, quente e confortável, o seu olhar deslizava pelas breves imagens que passavam, mas a sua memória trabalhava energicamente, trazendo-lhe à lembrança pequenos filmes de momentos que já tinham passado juntos, coisas do mais belo que já vivera, que a tinham feito flutuar uns centímetros acima do chão. E ainda faziam.
Agora projectava os momentos passados nos momentos futuros. Às vezes olhava para o relógio quase minuto a minuto. A cada um, estava um minuto mais próxima dele. E saboreava aquela expectativa. Por vezes tranquila e feliz, outras com uma euforia que lhe vinha do centro do peito e lhe dava vontade de cantar em voz alta.
Era assim a distância. Uma espécie de dor feliz. Porque é uma dor que nasce da existência de amor. E à medida que encurta a distância, aumenta o prazer daquela dor.
Finalmente o comboio começou a abrandar. Entrou na estação já quase tão devagarinho como o passo de um homem. Ela encostou o nariz ao vidro, como uma criança, na ânsia de o ver. E por entre as grossas gotas cerradas da chuva de Outono, ela vislumbrou-lhe o sorriso. E viu o seu próprio reflexo no vidro sorrir por entre a alegria dele.
Mais uma vez, sem nunca a desiludir, e por entre a tempestade, o comboio tornara a traçar aquela linha que os liga. E os pontos tornaram a unir-se. Missão cumprida.