terça-feira, 1 de junho de 2004

Pelo canto do olho


Foi há muito tempo. Ele era dela. Foi. Quis ser, durante muito tempo. Foram anos de cumplicidade construída sem esforço, que veio à superfície naturalmente, e se enraízou sem ser preciso regar. Transformou-se no fundamento da existência de ambos. Transformou-se num mundo perfeito, onde ninguém sabia penetrar, onde ninguém teria capacidade de chegar. Transformou-se na sua realidade, diferente da dos outros, especial, superior à dos outros, superior ao conhecimento e à sabedoria dos outros. Anos vividos no topo do mundo, numa aliança inquebrável, imutável.
Do topo do mundo ao desencanto foi um passo invisível. Como uma sombra escura, que se embrenhou imperceptível na alma de cada um. Porque num mundo perfeito, mais depressa que o amor, ganha força a intolerância. A saturação pelas falhas agigantou-se velozmente. Num mundo perfeito, espera-se receber tudo sem ter que dar muito. O egoísmo ocupou o espaço da compreensão. Num mundo perfeito, podemos ser tudo o que queremos. A cedência definhou e deu lugar à exigência.
E assim, num passo invisível, a cumplicidade deixou de servir, serem um do outro já não era suficiente, já nem sequer havia desejo de que isso fosse totalmente verdade. E o caminho que se via único no horizonte bifurcou-se. E cada um seguiu o seu, ainda que sem se perderem de vista. E aquele futuro certo, aqueles planos, começaram a deixar de acontecer. E se ela preferia acreditar que todos os caminhos que tomou e que a levavam para mais longe, na verdade a trariam de volta ao caminho comum, ele viu-a apenas cada vez mais distante, cada vez mais pequenina, a perder de vista. E quando ela quis voltar ao caminho comum, a estrada estava vazia. E o caminho dele já se cruzara com outro.
O que faria ela agora com todo o espaço aberto para a frente, no seu horizonte, aberto para um caminho que não viria a ser construído? Espaço dolorosamente vazio, apenas repleto de abandono, e da certeza de ter voltado tarde demais. Ninguém espera para sempre. Ninguém é o único. Agora a aliança tinha sido invadida. Agora o lugar dela já não lhe pertencia. Agora o mundo perfeito era de outra pessoa.
E agora...? Se corresse muito, se voltasse atrás para lhe gritar aquilo que nunca lhe disse, talvez... Será que ele ainda olhava para trás, à espera? Ou será que o caminho para trás era areia movediça onde ele não voltaria a pisar? No medo da resposta, na falta de coragem para a pergunta, deixou-se ficar no seu caminho vazio, a vê-lo afastar-se, até ser um ponto indistinto no horizonte, até o perder de vista.
Naquela manhã, sem saber porquê, contemplando os cabelos louros agora brancos, a pele perfeita agora enrugada, o olhar azul agora menos brilhante, lembrou-se. Lembrou-se daquele mundo que nunca tentou recuperar, daquele caminho que nunca lutou para construir. Nunca mais soube nada dele. Nunca soube se foi feliz. Nunca soube se ele voltou a pensar nela. Nunca soube se ele continuou a olhar para trás. Sem a coragem de falar, ela seguiu um novo caminho. Mas o pé nunca deixou de lhe fugir para aquele caminho que lhe ficou sempre à vista pelo canto do olho.