quinta-feira, 26 de agosto de 2004

Clones de Deus

Anteontem a televisão agarrou-me pelos colarinhos e atirou-me para o futuro. Um futuro bizarro, onde se perderam fronteiras e o real é resultado do artificial. E foi a mancha daquelas quatro vacas que me fez sentir uma espécie de fascínio aterrador. A ovelha Dolly já é história antiga, e eu não sabia. A mancha branca quase igual sobre o dorso negro daquelas quatro vacas quase iguais, iguais também a uma vaca mais velha, excelente produtora de leite, mostrou-me a mancha negra sobre o futuro. Eu não sabia.
Um cientista, algures no meio dos Estados Unidos, não cria vacas leiteiras – replica-as, a partir de uma única vaca original, que produz 3 vezes mais leite do que a média. Mas isto não é nada. Um homem surge no écran, com as lágrimas nos olhos, proclamando uma bizarra luta. Após ter perdido o filho de ano e meio num acidente hospitalar, passou a batalhar com a sua esposa pela autorização da clonagem do seu filho morto, por uma clínica especializada em clonagem. Arrepiante. Recriar uma criança morta? Seria a mesma? Seria outra? Seria de facto real? Ou seria a distorção total da vida como a conhecemos? Recusei a simples ideia de imediato.
Mas isto continua. Um homem, pertencente a um grupo defensor da clonagem humana, foi para um memorial à Princesa Diana com um cartaz que reclamava “Clonem a Princesa Di!”. Caí da cadeira. Ainda não me tinha apercebido bem da panóplia de possibilidades aterradoras e doentias que a clonagem traz. Há muito que ficou para trás o simples objectivo de recriar órgãos humanos para substituir os doentes. Não sei sequer se alguma vez esse objectivo terá de facto existido ou foi sempre apenas uma justificação. A fome de ser Deus é demasiado imensa e poderosa. Mas como qualquer clone, nós, os clones de Deus, seremos sempre imperfeitos, e muito, muito mais fracos.
Também dentro de uma vaca, foi colocado o embrião de um clone de uma espécie de búfalo em risco de extinção. Eis uma razão válida, aparentemente. Recuperar espécies extintas. Primeiro matámo-los, agora trazemo-los de volta à vida.
Estava eu convicta da minha condenação a esta interpretação do papel de Deus por maus actores, quando surge um outro grupo de cientistas. Estes fazem clonagem de... animais de estimação. Quando saiu a notícia de que tinham clonado um gato, foram invadidos por cartas e emails de pessoas a pedir para que os seus próprios animais de estimação, uns mortos, outros vivos, fossem clonados. As pessoas queriam rever os seus animais de estimação. Outros não queriam perdê-los. E foi aí que subitamente eu própria fui capturada pela possibilidade. Poderia eu voltar a ver o meu Nicky e a minha Nina? Poderia eu voltar a abraçá-los, senti-los, brincar com eles, vê-los correr, contemplar-lhes novamente o olhar? A sensação não de vencer a morte mas de a ludibriar e recuperar o que para sempre me fora tirado venceu-me. Se fosse possível, confesso, hesitaria mas acabaria por não resistir a trazê-los de volta. Poderiam não ser eles, mas eram eles. E a ilusão acabaria por ser absorvida pela realidade.
Não sei o que isto quer dizer. O dia em que passarmos a perna à morte, o valor das coisas vai desaparecer. A responsabilidade pela vida vai ela sim morrer. Deixaremos de ser únicos? Deixaremos de ser insubstituíveis? O nosso próprio valor vai relativizar-se?
Não sei. Sei que é um caminho irreversível, demasiado tentador para o homem não seguir, talvez mais uma maçã de Adão. Mas se fosse possível... se fôr possível... seriamos nós capazes de resistir a trazer de volta aqueles que um dia amámos...?