quarta-feira, 11 de agosto de 2004

Este lugar

Se eu pudesse parar o tempo, parava-o aqui, no meu bairro. Criava ali, num ponto do tempo, uma espécie de bolsa onde pudéssemos viver sem envelhecer mais, crescer sem termos que nos afastar. Se calhar fazia dele uma espécie de Brigadoon, que acordava uma vez de cem em cem anos, e a cada século tudo estava na mesma. E eu ia lá esconder-me, viver para sempre, com a certeza de que todas as manhãs ia encontrar caras conhecidas, sorrisos familiares a perguntar-me como estou. Com a certeza de que nunca ninguém ia desaparecer, com a certeza de que nunca ninguém precisaria de se ir embora para outro lugar. Com o reconforto de que este lugar ia estar sempre ali, para eu voltar para ele. Para eu voltar a casa.
O meu bairro é assim. Nunca foi um bairro bonito. Nunca foi um bairro chique. Nunca foi um bairro de vivendas nem cheio de árvores. Nunca foi um bairro livre de delinquência. Mas é um bairro livre de medo e de vidas trancadas a cadeado. As pessoas reúnem-se nas lojas e deixam-se ficar depois das compras, ficam a conversar à porta dos prédios ou às janelas, nas noites de Verão. As lojas ainda se conhecem pelos nomes, a mercearia é o Sr. Gabriel, a papelaria é a D. Deolinda, a padaria é a Dª Fernanda, o talho é o António, a peixaria é a Menina Ana, até o restaurante chinês já é o Sr. Gao.
Muitos filhos, depois de adultos, deixaram-se ficar, nas casas que eram dos pais, ou em casas compradas junto deles, para ficarem por perto. Não interessa que as casas tenham quarenta nos. Ficaram por ali. Talvez numa vontade subconsciente de que o tempo parasse.
Sei o nome dos vizinhos e dos filhos deles. Conheço-lhes as casas e sei-lhes os empregos. E sei que lhes posso deixar a chave de casa, e que se o meu carro tiver um problema, vou ter muitos deles a resolver-mo.
Pensando bem, talvez o tempo tenha mesmo parado, no meu bairro. Os miúdos já não brincam na rua, como nós, é verdade. Não desenham o Fugitivo na rua nem fazem concursos para ver quem cai mais da bicicleta. Mas o espírito permaneceu incólume ao tempo. Resistiu-lhe ao passar implacável.
Quando me afasto, sinto-me uma peça de um puzzle, em cenários onde não pertenço. E quando regresso saboreio sempre o encaixe com um sorriso e um suspiro. E mesmo se entro em casa e ela está vazia, sei-me sempre acompanhada.
Não queria que a vida me levasse para longe, não queria perder o tempo que resta deste mundo em que sempre existi, não queria perder o meu espaço nesta peça, não queria nunca voltar e perceber que o pano já se fechou sobre ela. Mas se um dia a vida tiver que me levar para longe, vou fingir que o tempo ficou parado, lá no meu bairro. E vou viver sabendo que aquele será sempre o meu lugar.