Comédia da vida real
Pelo meio do meu sono atravessava-se, insistente, aquela voz demasiado alta e enervada, com uma afectação a esconder a origem humilde. Enervada porque a filha estava nas urgências do Hospital, com ombro e perna dormentes, e sem ninguém saber porquê, com os médicos a atirar a culpa ao “stress”. O “stress”, esse novo culpado, nascido para originar todo o tipo de sintomas estranhos, bode expiatório para quase tudo o que o banco de urgências não sabe explicar. Os ditos bancos de urgências que, à falta de meios ecográficos, fazem radiografias para verificar dores no ventre (sim, esta foi comigo).
A mocita, com a perna presa e o ombro insensível, preparava-se para ter, ora pois, uma consulta com um psiquiatra. Isto após uma noite arrumada com Valium, porque os sintomas eram nervos. E embora não passassem, mesmo depois da dose cavalar de calmante, a teoria manteve-se. Sem outro tipo de análises e mandada para casa no próprio carro, porque até estava em condições de conduzir.
A Senhora, de cachuchos nos dedos e cabelo resistente a ventos ciclónicos, presa durante 3 horas no comboio, passou as ditas horas a ligar a tudo quanto era conhecido, familiar, amigo de amigo, familiar da amiga da filha, enfim. O denominador comum era serem médicos ou enfermeiros. Tinha que estar alguém, nem que fosse apenas vagamente conhecido ou não de todo, naquele Hospital para meter a cunha. Desde todos os telemóveis na agenda até à Ilha da Madeira, as chamadas seguiram-se com um debitar repetido dos sintomas da filha, acrescentado dos comentários de que uma perna sem acção e um ombro sem sensibilidade não são de nervoso. Mas que esta manhã ela ia ter uma consulta com um psiquiatra. E que só lhe fizeram uma radiografia. Os médicos devem ser novos.
Pelo meu sono atrapalhado passavam imagens da filha na cama do Hospital, imagens do médico de férias no Algarve a quem a senhora ligou, da amiga da filha que já nem devia lembrar-se dela, do tio médico na Madeira que por acaso ainda estava a dormir, porque afinal ainda eram sete horas da manhã. Tudo isto girando à volta de uma cunha, baseada no conceito, em muitos casos infelizmente fundamentado, de que os médicos desconhecidos não sabem o que fazem, mas que os médicos amigos sabem. E que os desconhecidos que sabem lutam em vão contra a falta de meios. Como em tudo o resto, pela saúde metem-se cunhas, onde quer que elas estejam. Na verdade, acho que, embalada pelo movimento do comboio, sonhei com alguma comédia grotesca, onde nós, afinal público, nos rimos até cair da cadeira do absurdo impossível que seria ter que chegar a este ponto. Meter cunha pela saúde. Haja quadro mais surrealista.
Ainda assim, talvez devesse ter ficado com a agenda telefónica da senhora.
A mocita, com a perna presa e o ombro insensível, preparava-se para ter, ora pois, uma consulta com um psiquiatra. Isto após uma noite arrumada com Valium, porque os sintomas eram nervos. E embora não passassem, mesmo depois da dose cavalar de calmante, a teoria manteve-se. Sem outro tipo de análises e mandada para casa no próprio carro, porque até estava em condições de conduzir.
A Senhora, de cachuchos nos dedos e cabelo resistente a ventos ciclónicos, presa durante 3 horas no comboio, passou as ditas horas a ligar a tudo quanto era conhecido, familiar, amigo de amigo, familiar da amiga da filha, enfim. O denominador comum era serem médicos ou enfermeiros. Tinha que estar alguém, nem que fosse apenas vagamente conhecido ou não de todo, naquele Hospital para meter a cunha. Desde todos os telemóveis na agenda até à Ilha da Madeira, as chamadas seguiram-se com um debitar repetido dos sintomas da filha, acrescentado dos comentários de que uma perna sem acção e um ombro sem sensibilidade não são de nervoso. Mas que esta manhã ela ia ter uma consulta com um psiquiatra. E que só lhe fizeram uma radiografia. Os médicos devem ser novos.
Pelo meu sono atrapalhado passavam imagens da filha na cama do Hospital, imagens do médico de férias no Algarve a quem a senhora ligou, da amiga da filha que já nem devia lembrar-se dela, do tio médico na Madeira que por acaso ainda estava a dormir, porque afinal ainda eram sete horas da manhã. Tudo isto girando à volta de uma cunha, baseada no conceito, em muitos casos infelizmente fundamentado, de que os médicos desconhecidos não sabem o que fazem, mas que os médicos amigos sabem. E que os desconhecidos que sabem lutam em vão contra a falta de meios. Como em tudo o resto, pela saúde metem-se cunhas, onde quer que elas estejam. Na verdade, acho que, embalada pelo movimento do comboio, sonhei com alguma comédia grotesca, onde nós, afinal público, nos rimos até cair da cadeira do absurdo impossível que seria ter que chegar a este ponto. Meter cunha pela saúde. Haja quadro mais surrealista.
Ainda assim, talvez devesse ter ficado com a agenda telefónica da senhora.
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