terça-feira, 3 de agosto de 2004

Hollywood no meu pára-choques

O velho estava completamente histérico. Parados na faixa da direita, subitamente obstruída com obras, andávamos um metro de cada vez que o sinal estava verde, à espera que na faixa da esquerda surgisse algum benfeitor que nos deixasse entrar à sua frente. A respirar os tubos de escape, emparedados entre camiões enormes, com a paciência meio derretida pelo calor que saía do alcatrão, é certo que ninguém estava propriamente contente. Mas esperava-se. Pelo espelho retrovisor eu via o velho berrar, gesticular, buzinar. Fiz-lhe sinal para passar por cima e ri-me. Mas o homem não ria, estava demasiado ocupado a consumir-se em fúria e a tentar consumir a réstia de paciência dos outros. E eu, felizarda mesmo à sua frente, era a que melhor assistia à tragicomédia que se passava mesmo atrás de mim. Mais um sinal verde. Do meu pequenino Twingo levantei os olhos para o elevadíssimo altar onde se encontrava um deus camionista, esses donos e senhores da estrada. Timidamente pedi-lhe licença, e o benévolo deus deixou-me passar para a sua frente. Foi num piscar de olhos. Quando olho novamente pelo retrovisor, vejo o velho na sua velha lata branca forçar ao limite a sua entrada na faixa da esquerda, mesmo atrás de mim, à frente do camião. Nem podia crer nos meus olhos! O deus camionista, fazendo-se distraído, não parou de avançar lentamente, até levar o velho e a lata branca à frente, até o carro estar quase completamente atravessado na faixa. A minha perplexidade só durou até começar a ver o carro demasiado perto da traseira do meu, e começar a ouvir o gemer do meu pára-choques!! O camionista não parava de avançar, entalando o velho e a lata de lado, entre a frente dele e a minha traseira! E num ápice perde-se a dignidade. Saltei do carro para fora gritando “O meu carro não!! O meu carro não!!”. Afinal eu não tinha culpa nenhuma. O deus camionista lá nos píncaros, sorria. E o velho? O velho, entalado dentro da lata, berrava, mas parecendo não perceber bem o que estava a acontecer, tentando em vão girar o volante. E o mais importante, sem largar o seu adorado telemóvel! Condescendente com a minha aflição, o deus parou de avançar. Eu entrei no carro a voar, e avancei um pouco. O velho, vendo-se solto, avançou contra a minha cara-metade, que tentava ver se o entalanço tinha provocado danos. E só quando o velho foi ameaçado de levar no focinho é que recolheu à sua insignificância. E com o carro totalmente amolgado do lado esquerdo, deixou-se calado como um rato e cada um seguiu o seu caminho. Do incidente ficou no meu carro apenas uma pequena marca no meu pára-choques que descobri ser de excelente qualidade. E não são todos que se gabam de ter um pára-choques com uma marcazinha de Hollywood.
E foi mais um dia no trânsito lisboeta, que venho a descobrir desde há 5 meses para cá. Já mencionei que adoro conduzir...?