terça-feira, 21 de setembro de 2004

Regresso em sapatos de ténis

Depois de viver dias de luz, como uma ilha, cercada de mar por todos os lados, longe das verdades, das dores, das dúvidas, das chuvas, vindo de vez em quando a terra descobrir cantos do mundo onde os raios de sol ainda tocam os rostos e os caminhos, e onde as cores ainda são garridas, o regresso vive-se numa espécie de anestesia. A alma ainda navega, ficou-se por lá, com o azul no olhar, e o corpo em terra firme sente-se zonzo, e funciona em piloto automático, com o chão a ondular lenta e hipnoticamente. Foi a liberdade que passou por mim, e deixou-se ficar um bocadinho. E nada é eterno como o gosto pela liberdade.
É por isso que o regresso se faz... de sapatos de ténis. Esses que insistem em se deixar ficar, agarrados aos pés, como um leve sabor do espaço para percorrer, como um leve perfume do conforto de estar longe. Para facilitar o caminho de volta. Mas, ao sair do carro esta manhã, cruzo-me e caminho lado a lado com ela. A perversa, que me atirou com a realidade à cara. Perfeita. Cabelo negro e liso, perfeito, pele morena, perfeita, sandalinha creme de salto agulha, perfeita, vestidinho sensual/profissional imaculado, perfeito, atitude séria/profissional, perfeita. Olhei para baixo, para mim. No fundo das calças de ganga, os ténis. Quem é que queres enganar? Voltaste. E amanhã é dia de começar a parecer que também trabalhas.
Ultrapassei-a rapidamente. Pude imaginar o olhar repugnado da Perfeição, perante o à vontade que lhe caminhava à frente. Encolhi os ombros e acelerei o passo. Pelo menos eu pude caminhar sem ter medo de pisar uma pedrinha. E como pude andar sem ter que prescrutar todo o terreno à minha frente, cheguei ao elevador muito mais depressa que ela!
Quem sabe amanhã me chegue a vontade da compostura profissional, e os sapatos de ténis fiquem em casa? Por hoje, faz de conta que ainda é a semana passada! E assim que a alma voltar do mar, vai logo começar a esticar a mão aos próximos dias de liberdade.