terça-feira, 28 de setembro de 2004

Um vestígio de Deus

Desde sempre o vi assim, desde que o conheci. Não era preciso nenhum sexto sentido para perceber que ele tinha qualquer coisa de diferente, diferente dos outros todos, que têm esperança mas não acreditam. Havia nos olhos dele a ingenuidade da fé. Uma fé religiosa no futuro e nele mesmo. E se no início me convenci que isso acompanhava apenas a ingenuidade da idade, o tempo provou-me o contrário. Quando quisemos que os nossos caminhos se voltassem a cruzar, o meu olhar tinha crescido e secado, o dele continuava o mesmo, brilhante e vivo, seguro de que o quer hoje é o que queria há 15 anos atrás. O tempo passou, atirou-lhe pedras ao caminho, mas não foi capaz de apagar-lhe a vontade. Essa agigantou-se até não se verem os medos e as dificuldades que se ficaram por detrás e perderam de vista. Não se rendeu às pressões, não cedeu a ser igual aos outros, não se abateu com a probabilidade mínima de conseguir. Perseguiu-se a si mesmo e ao que sonhou, como se não houvesse outro caminho, como se esta fosse a única forma de vida possível.
É por isso que amanhã, os olhos dele vão brilhar mais do que nunca. Para ele, o sonho pode acabar hoje e viver-se amanhã. Amanhã pode começar a vida que ele buscou sempre. Também pode não ser amanhã. Pode até não ser nunca. Ele sabe-o bem. E também sabe que não vai baixar a cabeça. Se a vida não for o sonho, então será a busca dele.
Quando o olho nos olhos, tudo fica perfeitamente claro. Desistir não é alternativa. É morrer. É preferível acreditar até ao fim, do que perder a fé tão cedo e viver sem expectativa, e sem nada por que lutar.
Amanhã vou lá estar, a vê-lo viver. A aprender a fazer o mesmo. Gostava que toda a gente que secou pudesse ver-lhe o olhar. Há por ali um vestígio qualquer, uma mensagem de algures, que bate cá dentro. E de repente percebemos... que a vida é mesmo o que fizermos dela. E que ela pode ser mesmo tudo o que quisermos.
Mas se o vestígio caiu do céu, o resto não. O resto esteve sempre aqui, nas nossas mãos.