quarta-feira, 29 de setembro de 2004

Vida após a vida

Num quarto de hospital, Mark aguarda o seu último suspiro. O seu corpo degradara-se até não lhe restarem forças, mas a mente ainda lúcida percorria não memórias ao acaso mas visões do futuro e o reencontro com a sua mulher. Lá fora, algures por perto, um grupo de homens e mulheres aguarda pacientemente que o coração lhe pare de bater, pronto para entrar em acção a qualquer momento. Ele esboça um sorriso fraco, mas vencedor. A qualquer momento irá passar a perna à morte. Iria parar de respirar, é certo, mas o seu corpo nunca viria a estar coberto de terra, tornado em cinzas ou mergulhado no oceano. A umas horas de distância, numa sala branca e estéril, cheia de estranhos cilindros de metal com cerca de três metros de altura, estava o lugar onde ele cairia num estado de suspensão. E a próxima vez que abrisse os olhos, o lugar talvez não tivesse mudado muito, mas o tempo sim.
Foi com a visão imaginada do futuro que o coração lhe palpitou uma última vez. E foi nesse instante que o futuro começou a acontecer. Foi tudo muito rápido. A enfermeira deu o sinal de paragem do coração, e o grupo de homens e mulheres entrou quarto dentro, munido do equipamento que lhe irá manter o cérebro vivo. É tudo muito confuso, mas cada um sabe exactamente o que fazer. Aplicam-lhe um estranho objecto à volta do peito, que o comprime de forma a restabelecer a circulação sanguínea e de oxigénio, é-lhe administrada uma anestesia para reduzir o metabolismo cerebral e mantê-lo inconsciente, e o seu corpo é ao mesmo tempo arrefecido com gelo até uma temperatura em que o oxigénio já não é necessário. E todo o corpo é injectado com anticoagulantes e uma série de outros medicamentos.
É o corpo de Mark, com a vida em suspensão, e com uma máquina a fazer-lhe as funções de coração e pulmões, que passa as portas que dizem “ALCOR, Fundação para a Extensão da Vida, desde 1972”. Já numa sala de cirurgia, o seu sangue é-lhe substituído por uma solução especial para a preservação de orgãos, no crânio tem já duas pequenas perfurações para que o estado do seu cérebro seja monitorizado. Começa então o arrefecimento, primeiro em óleo de silicone, depois em vapor de nitrogénio, durante duas semanas. É preciso ter cuidado, pois um arrefecimento demasiado faz com que o corpo estale e se parta.
Hoje, o corpo de Mark repousa mergulhado em nitrogénio líquido, dentro de um cilindro de metal, numa sala em Scottsdale, Arizona. Partilha o cilindro com mais quatro pessoas. Uma delas é a sua mulher. Ao seu lado mais cilindros, uns do mesmo tamanho, outros bem mais pequenos, que guardam cabeças de gente que pensou como Mark mas que aguardam também a evolução dos corpos biónicos onde poderão ser reinstaladas. Repousam todos em criopreservação, esperando um futuro que os possa curar. Naquela sala preserva-se a ilusão da imortalidade, congela-se o fim para que ele nunca chegue.
É altamente improvável que um dia Mark e sua mulher regressem à vida. Ainda que talvez nunca a tenham de facto abandonado. Morreram como nós adormecemos todas as noites, com a possibilidade de uma nova manhã. Talvez essa seja a única vitória possível sobre a morte.