quarta-feira, 16 de junho de 2004

Duas caras


Para ele, crescer tinha-se revelado um processo doloroso, ou dolorosamente revelador. Aos seis anos, no recreio da escola, viu o melhor amigo gozado pela turma inteira por usar óculos, aos dez via-se ficar para último quando se escolhiam as equipas na aula de ginástica porque era gorducho, aos 13 viu o irmão mais novo ser excluído dos grupos de trabalho porque as notas dele não eram boas, aos 16 foi ele gozado porque ainda não era tão alto como os amigos, aos 17 viu a irmã de 15 ser ignorada porque não usava as mesmas roupas das amigas. Aos 18 deu graças a Deus por ter finalmente atingido a maioridade, concluiu que a infância podia ser tão doce quanto cruel, e desejou que houvesse de facto neste marco etário uma diferença para melhor, que aquela crueldade inconsequente de quando somos novos tivesse ficado lá, naqueles primeiros anos. Prometeu a si mesmo que ia tentar ensinar os filhos a serem tolerantes e livres de preconceitos, e continuou em frente.
Ao princípio assim foi. Pareceu-lhe que a discriminação era afinal coisa de quem ainda não conhecia o mundo, de quem cresceu sem orientação, de quem ainda não sabia pensar antes de falar, de quem pensava sem fundamento, um privilégio inalienável dos mais novos.
Aos 23 chegou ao mercado de trabalho. E o contacto com estas novas pessoas foi de facto diferente. De repente já ninguém dizia o que pensava. Correcção: já ninguém dizia o que pensava de uma pessoa, à frente da dita. Agora toda a gente parecia dar-se bem com toda a gente. Agora só havia sorrisos para todos. Agora só havia palavras bonitas e atenções uns para com os outros. Agora só havia amizades, só havia compreensão, só havia tolerância. As verdades diziam-se e partilhavam-se, com todos menos com aquele de quem se falava. Começou a ficar confuso. Se antes havia alguma crueldade, também havia, é certo, sinceridade. Agora nada se falava, tudo se comentava em “segunda fila”, em murmúrio. Se num minuto o Joaquim dizia mal da Fernanda, no minuto seguinte ia almoçar com ela em amena cavaqueira, como se fossem os melhores amigos. Porque lhe convém. Convém ao Joaquim, porque a Fernanda o pode ajudar a destacar-se no emprego. Convém à Fernanda, porque a amiga Júlia até está de baixa e ela precisa de um aliado, para se juntar a ela contra o Amadeu, que anda à caça do cargo de chefia há anos. É conveniente dizer mal de alguém, porque assim se constróem os grupos, assim se fazem aliados. Juntos contra alguém de quem se pensa e diz mal. Mas como é importante manter todas as ligações, porque nunca se sabe quando alguma nos pode vir a ser útil, mantenhamo-nos fiéis às nossas convicções, às nossas opiniões, apenas em segredo. Deixemos todos os caminhos em aberto, sejamos sempre simpáticos, sorridentes, amigos, mesmo com aqueles a quem dedicamos as nossas mais maldosas palavras.
Aos 30, já tinha assimilado algumas destas técnicas, porque sem elas, voltava a ser o rapazinho gorducho que era deixado para último, na escolha das equipas de voleibol. Com a diferença de que agora toda a gente continuava a sorrir-lhe, a dar-lhe palmadinhas nas costas, e a dizer como ele é um gajo porreiro.
Aos 35, percebeu que não tinha grande talento para aquilo, e que não queria falar e sorrir às pessoas de quem não gostava. Queria dizer a verdade toda, quando não concordava. E assim fez. E assim foi ficando mais isolado. Escolheu ir almoçar sozinho, em vez de mal acompanhado. Escolheu trabalhar sozinho em vez de com os que se encostavam a vê-lo trabalhar.
Mas estar sozinho também não era caminho. E aos 40 conclui que só havia uma forma de conseguir continuar. Ter duas caras. Ser duas pessoas. E assim foi. Com a família e os amigos, tinha uma, a verdadeira. No trabalho tinha outra, plástica, sorridente e bem disposta.
E foi assim até à reforma. Fez “colegas”, foi aumentado, depois promovido. Aos 65, quando deixou de ter que se levantar todos os dias de manhã para ir trabalhar, queimou a segunda cara dentro do caixote do lixo que tinha debaixo da secretária, e foi a cada uma das pessoas de quem não gostava, das pessoas que viu trair e fingir. Pôs a sua verdadeira cara sobre o pescoço, e disse exactamente o que pensava. Finalmente. Aquilo fez-lhe ganhar mais uns anos de vida! Despediu-se dos que gostava, e virou costas. Para trás ficou um teatro, vivido oito horas por dia, durante tantos anos. Pela frente veio o futuro, finalmente com a única cara que Deus lhe deu.

1 Comments:

  • Ter duas caras é trair a si mesmo, a pior coisa que uma pessoa pode fazer.

    By Anonymous Anónimo, at 11:02 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home