segunda-feira, 7 de junho de 2004

Pele de mulher


Era um fim de tarde como os outros. Começava a cair mais uma noite de Outono, e já havia pouca gente no escritório. Estava eu, dois ou três colegas de outros departamentos, e o Chefe, fechado na sua sala, e a sua Secretária. Já eu estava a pensar no caminho de casa, quando a Secretária me chama: “O Chefe quer falar contigo.” O meu coração palpitou, como palpitava o coração de todos os que eram subitamente chamados por ele. Porque ele era como a figura típica do Chefe de Polícia dos filmes de Hollywood: impaciente, irritadiço, ríspido, ultra-exigente, mau, pior que o “Deus me livre”. E toda a gente tremia como vara verde, quando recebia o chamado dos infernos.
Respirei fundo e lá fui, qual cordeiro para o sacrifício, revendo todos os meus últimos trabalhos numa tentativa de prever qual teria sido o meu erro. Mas o atravessar da porta para dentro da toca do lobo trouxe-me um ambiente muito diferente do que eu esperava. Por trás da secretária de trabalho, e da papelada toda escrupulosamente organizada, estava um homem com um sorriso nos lábios, que me convidou a sentar e a estar à vontade, porque precisava de falar comigo. “Vou ser promovido para um cargo superior num novo departamento, e gostaria que você fizesse parte da minha nova equipa.” Os meus pensamentos voaram sem controlo pela sala! Vindo daquele homem, aquilo era um enorme elogio! Aquilo era um pavor! Aquilo era estranho. Aquilo era... difícil de aceitar. E difícil de não aceitar. Com os elogios sobre a minha forma de trabalhar, sobre o meu potencial, sobre a forma como me tinha revelado, a decisão começou a inclinar-se para o “sim”. Feliz por estar a ter o meu esforço reconhecido, perguntei então para que função ele me convidava. E foi aí que as terríveis palavras foram proferidas. “Sabe, estive muito hesitante. Pensei dar-lhe a si o cargo que acabei por dar ao Pedro Santos. Mas fui egoísta, e quero que seja minha assistente”.
Foi nesse dia que eu a senti pela primeira vez na pele. A discriminação. Se eu fosse homem, teria ido gerir projectos, teria tido oportunidade de subir na carreira. Mas eu era mulher. E assim cabia-me o lugar de Secretária. Um homem com capacidade é promovido. Uma mulher com capacidade é óptima para ter como Secretária. Esta foi a primeira vez que o senti claramente. E com os olhos abertos para essa triste verdade, nunca mais deixei de reparar em todas as vezes que isso continuou a acontecer. Perdi a inocência de achar que era intelectualmente igual a toda a gente, e que toda a gente achava o mesmo. Perdi a inocência de acreditar que os caminhos que se me abrem são os mesmos do colega do lado. Perdi a inocência de trabalhar crente no facto de que me basta ser profissional e eficiente. Apercebendo-me disso, acrescentei criatividade, formação, mais trabalho, mais resultados. E... permaneço a mulher que foi Secretária. Permaneço mulher, ligada aos estereótipos de séculos, presa às funções para mulheres. Permaneço mulher, no inconsciente de muitos ainda sem lugar igual numa equipa de homens. Já perdi a conta às vezes que eu trabalho e o colega do lado é reconhecido. Como se não fosse possível uma mulher fazer tal trabalho. Só pode ter sido ele...!
Não quero ouvir negação desta verdade, não quero ouvir discurso politicamente correcto, não quero ouvir que já não é assim. Ouvi há dias que uma mulher, para conseguir o mesmo caminho que um homem, tem que ser três vezes melhor. E poupem-me os títulos de feminismo. Esta é a minha pele. E eu sinto muito bem o que lhe fazem.