Há anos atrás, numa série vi uma mulher dar a notícia da sua gravidez ao namorado:
- Time’s up, Steve. It’s someone else’s turn to be a kid.
(Acabou o tempo, Steve. É a vez de outra pessoa ser uma criança.)
Não. Na na na, nem pensar. Ela fica sempre aqui. Pode assumir uma personalidade ou outra, mas nunca nunca vai embora. Podemos passar de bebés a meninos a adolescentes a jovens a adultos a quarentões cinquentões de mais idade idosos, anciões o raio que o parta. Mas a criança, essa criança que começámos sempre por ser, nunca deixa de existir. Podemos crescer e ter as nossas próprias crianças, tornarmo-nos pais e avós de crianças. Mas nunca somos mais do que crianças que tiveram crianças. Ralhamos aos nossos filhos, atabalhoadamente encavalitados no alto dos sapatos altos que roubámos do armário das nossas mães. E esta batalha entre o adulto que parecemos e a criança que somos é… sei lá, nem tenho palavra. Como é que se equilibra isto?
Um dos sonhos que acompanha a maioria de nós, ao crescer, é ter filhos. Depois temos filhos e continuamos a ter sonhos. Outros sonhos, uns que também já tínhamos antes, outros novos. Era suposto? É que parece tanto não combinar.
Porque concretizar outros sonhos significa abdicar de tempo com o sonho que já concretizámos. Aquele que é o mais fascinante, mais exigente, mais desafiante de todos. Ter um filho. Às vezes acho que a partir do momento em que se tem um filho, o nosso software devia bloquear a aplicação Sonhos. Porque agora já não somos uma criança, somos adultos. Os adultos não têm sonhos, têm responsabilidades. Isso deve estar escrito em qualquer lado. E a nossa prioridade é aquele sonho, não outro qualquer. É a criança mais nova, não a que tem 30 ou 40 anos.
Mas não, o software traz bug. Tem-se um filho e pimba, ao fim de um tempo aí vai a nossa criança (a que temos cá dentro, não a que saiu cá de dentro) lançada em novos sonhos. Sonhos que exigem mais tempo do que as 24 horas do dia. Sonhos que nos obrigam a abdicar de tempo com o sonho nr 1. E esse tempo é todo tão precioso.
Depois há as opções em como lidar com a criança de dentro.
Há os que a deixam sair e vivem ao sabor dos seus desejos. Esses trocam as prioridades, os filhos são apenas uma parcela (zinha) da sua existência, e abdicam de tempo com elas (já tão pouco!) para perseguirem os seus sonhos. Entre muitas coisas, isso resulta na queda do papel de adulto totalmente sobre o outro com que fez o filho, que não tem mais remédio que fazer-se adulto a 100%, para compensar a criança que o primeiro é.
Há os que optam por fingir que são mesmo adultos. Amordaçam a criança de dentro, dizem-lhe que o tempo dela acabou, e dividem o seu tempo entre as responsabilidades e o sonho nº 1. Infelizmente, a criança amordaçada acaba por ter birras terríveis, espernear, dar pontapés, e transformar a nossa vida num inferno. Porque ela pode estar calada. Mas está lá. E continua a querer tudo o que quer.
E depois há os que vivem na ilusão de que vão conseguir. Hão-de conseguir chegar a tudo, e agradar às duas crianças. Há-de chegar o dia. Um dia.
Os primeiros para mim são os maus da história. Os segundos e terceiros os que oscilam entre momentos de grande felicidade e realização com a criança de fora, e de grande frustração com a criança de dentro.
Para tentar encontrar a solução, imagino-me velhinha, nas últimas horas. E penso no que nesse momento vai valer. O que realmente vai deixar-me feliz por ter feito? E do que realmente irei arrepender-me de não ter feito? Porque acho que nesse momento – e só nesse momento – devemos ter a clarividência do que realmente importa. E nesse momento deve parecer tão irritantemente óbvio.
Porém, a resposta parece-me sempre óbvia. A criança de fora. Sempre.
Mas há algo ainda mais óbvio. A criança de dentro definitivamente não concorda com a velhinha.