segunda-feira, 4 de abril de 2005

O fim antes do fim

Estando totalmente fora do contexto católico apostólico romano, sempre me foi possível ter da Igreja Católica uma visão pragmática, histórica e inevitavelmente crítica. Na defesa do dogma, Karol Wojtila era totalmente conservador. Nunca revogar o celibato obrigatório dos padres. Nunca dar lugar às mulheres no sacerdócio.
Mas é inegável. Karol Wojtila deixou ao mundo ocidental uma lição inesquecível, para quem queira sair da sua realidade mesquinha e abrir os olhos.
De início também a mim me foi estranho ver este homem sofrer, tentando cumprir um dever para o qual lhe faltavam as forças. Cheguei a colocar a célebre hipótese de ser a própria Igreja quem o forçava a continuar, contra a sua própria vontade. Mas foi preciso abrir apenas um pouco os olhos para perceber.
Numa sociedade como a nossa, que esconde os velhos, esquece os doentes e rejeita inutilmente a morte, Karol Wojtila atirou-nos com a verdade. Obrigou-nos a olhar para a doença, obrigou-nos a encarar a velhice. Mais importante que tudo, forçou-nos a ver que o fim chega sempre. Mas que a sua proximidade não significa desde logo estar morto. Não significa parar, não significa desistir, não significa ser inútil.
No dia em que, pela última vez em Portugal, demorou mais de três minutos a ler quinze linhas em português, o sofrimento e o imenso esforço de Karol reflectiram-se no constrangimento visível no rosto de Sampaio e de todos os que assistiam. Um estranho embaraço perante um corpo em decadência, mas que ainda trabalha, ainda existe e luta. Mas Karol não teve vergonha da doença. Não teve vergonha do seu corpo decadente.
Tornámos a nossa vida muito mais difícil, ao tentar omitir a morte, ao escondermos o corpo velho, ao fugirmos apavorados da doença.
Karol Wojtila não nos disse. Karol mostrou-nos. A perserverança é possível até ao fim. E até ao último suspiro somos capazes de cumprir uma missão.