quinta-feira, 12 de maio de 2005

À espera

Quando passamos os dias à espera de uma notícia que tem poucas probabilidades de ser boa, tudo o que temos para nos agarrar é fé. Fé em Deus, em amuletos, em rezas, em superstições, em actos, em palavras, em pensamentos, em esperança. Sob que forma for, é fé. Porque nada mais resta. Porque nada mais podemos fazer. Porque não está nas nossas mãos. Porque há coisas do destino que não dependem mais de nós. A essas respondemos com fé. Porque às vezes é mesmo preciso acreditar, para que algo aconteça.

terça-feira, 10 de maio de 2005

Chávenas brancas

Por trás do balcão do bar estava um monte delas. E subitamente abriu-se um vortex temporal que me sugou para os pequenos-almoços dos hotéis em Veneza, em Barcelona, em Viena, em Roma, em Praga, em Londres, em Madrid... e os cheiros dos croissants e da manteiga, e do café com leite e do chocolate quente. Dentro de chávenas brancas. E daí lá para fora, para as cidades cheias de sol, cheias de novidade, cheias de lugares novos, cheias de gente diferente. E daí para aqueles dias em que se abrem as portas do hotel e lá fora está o mundo todo, e podemos escolher o caminho que nos apetecer, e o destino que nos apetecer. E os dias quentes em que nos deixamos ficar debaixo das árvores. E os outros dias em que agarramos cada segundo, e vamos a todo o lado, e chegamos ao fim do dia de rastos, mas ansiosos por outro dia igual!
As chávenas brancas raptaram-me para longe das obrigações, longe da rotina, longe dos dias repetidos, longe daquilo de que não posso fugir. Depois a voz da senhora do bar perguntou-me “o que é que vai ser?” e estilhaçou as chávenas brancas.
Felizmente, as nossas chávenas brancas não se partem. E acredito que algures lá fora há sempre mais uma para a nossa colecção.

quinta-feira, 5 de maio de 2005

As lesírias no alcatrão

Hoje de manhã fui apanhada num trânsito em marcha lenta, que de princípio não percebi. Ao fim de uns instantes vi-os. Eram uns vinte. Todos pomposos e empertigados, nas suas fardas impecáveis, atravessando a cidade no alto dos seus viçosos e orgulhosos cavalos. Fiquei a pensar... Não consigo imaginar para onde iriam. Com que missão. Em trote lento, sem olhar em volta, absolutamente deslocados entre os carros e as pressas de chegar ao emprego. Sem objectivo aparente. Para trás a fila de trânsito, sem poder evitar atropelar o rasto de bolas acastanhas meio esborrachadas no asfalto.
Esporadicamente deixam-se ver, mais às suas botas e ao seu porte e ao seu rasto de inequívoco odor. É a Polícia Montada. Só lhes vejo estes desfiles, só lhes vejo estas paradas que vão terminar sabe-se lá onde! Parecem reminiscências de tempos de honra, uma antiguidade fora do lugar. Mas... se não há propósito em estrumar o alcatrão... que utilidade é esta, em cidades como Lisboa?

quarta-feira, 4 de maio de 2005

Irritante à primeira vista

Todos o somos, para alguém. É uma sorte destinada a todos, ninguém escapa. Somos um animal de primeiras impressões, e algumas são demasiado fortes para apagar. Cada um de nós é insuportável para alguém, ou “alguéns”. Fizemos-lhe tocar todas as campainhas, todos os alarmes. É pôr-nos a vista em cima e as setas luminosas rebentam por cima das nossas cabeças. “Aquele não!” Ainda não lhe fizemos nada e pimba, já temos um retrato feito. Às vezes uma caricatura míope. Outras vezes uma terrível representação das nossas trevas. Ou como diz o Rui Veloso, o nosso lado lunar.
Às vezes não é à primeira vista. Mas seja ou não, com o tempo desenvolve-se um gosto por não gostar. Deste ou daquele. E lá servimos de vodu para as frustrações de alguém.
Todos nós somos alvo de comentários sussurrados, de observações depreciativas, de análises cuidadas aos nossos defeitos. Lá no íntimo pensamos que se calhar connosco não é bem assim. Somos sempre a excepção... no País das Maravilhas.
Aqui na Terra é uma característica intrínseca. Precisamos dos nossos vodus, dos nossos exorcismos. E há algures em nós uma zona qualquer que serve para isso mesmo, para os identificar logo ao primeiro contacto.
O meu mais recente entrou-me pela sala a dentro há um mês. Ele sorri-me, conversa, é prestável. E contudo há em tudo isto algo de profundamente irritante. O peso na consciência que me fica não serve para apagar o instinto que me grita tratar-se de uma grande dose de farsa. Sem provas. Sem argumentos. Foi um veredicto feito algures num nível superior ao consciente, longe do terreno racional, e sem o meu controle.
Nunca seremos amigos. O alarme toca sempre ao menor sinal de proximidade. Estranhos, estes caminhos do irracional, estas coisas cá dentro que funcionam sem nós.

terça-feira, 3 de maio de 2005

Vende-se vida

Quantos momentos? Quantos sonhos? Quantos sorrisos? Quantas noites de amor? Quantos dias de felicidade? Quantas horas não recuperadas? Quantas expectativas abafadas? Quantos talentos deixados para sempre? Quanta gente esquecida? Quanta coisa nossa, deixada por fazer?
Amadurecer também é isto. É abdicar de voos altos da felicidade. É transformar sonhos em sobrevivência. E satisfazer-se tantas vezes com o básico. É ser feliz com o que se puder. É tantas vezes ter que vender tudo isso. Por dinheiro.
Espero eu que se vendam partes da vida que não volta, por outras que, sem vender essas, nunca poderíamos ter.

segunda-feira, 2 de maio de 2005

Pontos Negros

“Olha, ainda queres esta folha?” – perguntou-me ela, segurando um A4 onde eu imprimira um trabalho e apontara algumas correcções a fazer.
“Não, – respondi sem pensar - podes ficar com ela.” E automaticamente, o braço dela desceu e atirou a folha – totalmente branca de um lado – para o lixo.
Está bem. Vivemos num mundo de modas. Num mundo de politicamente correctos. Quanto mais elevada a formação e o status, maior a exigência de dizer ou não dizer certas coisas, de usar ou não usar outras. Isto levou, é claro, ao cúmulo da hipocrisia.
Aqui é só olhar em volta todos os dias. Gente com formação universitária, que gosta de dizer que temos que defender o planeta e que gosta de dizer mal da poluição, do desperdício e da ganância humana. Gente que gosta de dizer que é justa, correcta, cumpridora. É vê-los todos os dias. Caixas de papelão, garrafas de plástico, resmas e resmas de papel. Tudo vai direitinho parar ao lixo. T-U-D-O. É vê-los nos dias de aniversário rasgar avidamente os papéis de embrulho e indiferentemente pregar com tudo no caixote tão convenientemente mesmo por baixo da secretária. Convenhamos, está muito mais perto que o Ponto Verde...
- Sim, é preciso poupar recursos. Sim, é preciso proteger o planeta. Eu sou a favor! Mas porra, que o façam os outros. Eu cá não tenho tempo. Nem paciência. Aliás, na verdade, estou-me a cagar para isso tudo. Só preciso de dizer que sim de vez em quando, porque parece bem.
No meu bairro, já nem é preciso caminhar até ao Ponto Verde. Deixa-se o lixo seleccionado à porta do prédio e vêm buscar. Está tudo organizado. Excepto na cabeça da maioria dos vizinhos, que à falta de um mínimo de consciência, optam por fazer pouco de quem à noite leva os saquinhos com a reciclagem.
Nos dias 25 de Dezembro, as nossas cidades são a imagem personificada da degradação e da mesquinhez. As caixas das bonecas e das pistas de carros, as toneladas de papel das prendas dos tios e dos primos e dos pais e dos filhos e das madrinhas. São os contentores do lixo atafulhados delas. E os Pontos Verdes ali pertinho, muitos deles à espera de ocupantes.
São as nossas cabeças pequeninas, que não vêem além do seu umbigo, e vivem autistas no seu mundinho, onde entre as palavras e o actos construíram o fosso da conveniência. Vistas de longe, estas cabecinhas são os pontos negros desta Terra. Tantos e tantos, mais e mais. E parece não haver Clearasil que nos valha.