quarta-feira, 30 de junho de 2004

Pessoa em construção


Quase todos os dias penso em ti. Maravilha-me a ideia de que existes. De que já existes. Tiro quase sempre uns segundos para imaginar-te. Para tentar adivinhar como estás, para saber qual será a última novidade do teu corpo. Hoje, pela primeira vez, não foi preciso imaginar-te. Vi-te. Mas a realização da imagem que fui formando durante este tempo serviu apenas para imaginar mais longe. Quem vem dentro desse corpo? Quem és tu, que ninguém conhece mas todos esperamos?
Às vezes tenho receio que não gostes deste mundo. Que vás perguntar a Deus o que lhe passou pela cabeça para te pôr neste lugar. Às vezes acho que devia dizer-te qualquer coisa. Mas não sei o quê. O tempo vai passando, e nós continuamos sempre a apalpar terreno. Continuamos sempre confusos com a nossa própria lógica. Mas se eu continuo à procura de um sentido, hoje vi-o. Quando te vi. Não sei se já inventaram palavras para isto... Acho que senti a continuidade do tempo, acho que senti o futuro, acho que senti a vida. Se tinha receio de que não gostasses do mundo, enganei-me. Tu próprio és razão para o querer, para o amar. E o mundo passa a vida a mandar estes sinais a toda a gente. Desta vez calhou-nos a nós, que te rodeamos. Aquela imagem a preto e branco traz consigo toda a cor que nos faz falta.
Pena não poder dar-te certezas. A não ser que estamos todos à espera que chegues. E que, quem quer que sejas, terás algo incondicional chamado amor. E só isso vale todos os segundos.
Por isso, prepara-te bem e vem daí! Vais curtir à brava.

segunda-feira, 28 de junho de 2004

Não estou aqui


Técnica ancestral, desenvolvida em escritórios portugueses, normalmente de função pública, onde trabalhar é uma actuação com mérito de Oscar.

Autopromova-se até à exaustão. Mostre ao Chefe do departamento para onde almeja ir que não poderá haver melhor aquisição que você. Você é uma pessoa séria, uma pessoa profissional, você é uma pessoa de ambição – absolutamente controlada, pronta a suar pelo departamento, pronta a enfrentar todas as dificuldades e totalmente capaz de resolver qualquer problema com um olho fechado e uma perna às costas. Seja melga. Mostre que está decidido a lutar até ao fim.

Depois de entrar no departamento almejado, analise bem o escritório onde vai ser colocado. Escolha uma posição chave, preferencialmente de costas para uma parede, por forma a que ninguém possa ver o que está a fazer. Durante o dia, escreva muito, faça muitos cliques com o rato, para que se perceba que está sempre a trabalhar. Nota: sites de chat ou jogos fornecem muito bem este tipo de funcionalidade. Fume: como os colegas não suportam o fumo dentro da sala, isso obriga-o a sair constantemente para fumar no corredor. Coloque um ar apático/antipático. Uns pensarão que você é uma pessoa burra a quem não vale a pena pedir ou perguntar nada, outros pensarão que é um monstro com o qual deve evitar-se abrir qualquer canal de comunicação. Use sempre auscultadores, durante todas as sete horas e meia de trabalho. É uma excelente forma de parecer nunca ouvir os telefones a tocar. Se por algum motivo, se vir obrigado a atender o telefone, nunca pergunte se pode ajudar, pergunte sim imediatamente se a pessoa quer deixar recado. Os auscultadores também inviabilizarão a comunicação à primeira e à segunda tentativa, pelo que a maior parte das pessoas desistirá de todo, já que há outras pessoas que respondem à primeira. Nunca dê opiniões, palpites, não faça piadas, não releve a ninguém que está presente. Com o tempo, as pessoas acabarão até por esquecer-se que você está dentro da sala.

Se ainda assim lhe passarem trabalho, mostre-se revoltado! Tudo para você, tudo para você! Você não pode chegar a tudo! Terá de falar com o Chefe para que ele decida o que quer que você faça, de entre a enorme lista de afazeres!
Poderá também aceitar a tarefa em silêncio, e deixá-la por fazer durante dias, na desculpa do muito trabalho que tem sobre os ombros. Com o tempo, as pessoas assimilarão a ideia de que qualquer trabalho que lhe pedirem demorará demasiado a ser realizado, e escolherão um outro idiota qualquer que se esforça por fazer tudo o mais rápido possível.

Nas reuniões, faça um ar entendido, de quem está farto de saber tudo o que lá se diz. Acene afirmativamente a algumas declarações, diga esporadicamente um “Claro!” ou um “É óbvio.”, isto transmitirá todo o seu conhecimento. Se pedirem alguma opinião à equipa, mantenha-se em silêncio absoluto até que alguém se sinta na obrigação de falar. E depois confirme que o outro está certo, sem pronunciar uma palavra, apenas com um superior aceno de cabeça. Mas - atenção! - não olhe as pessoas nos olhos. Assim nunca correrá o risco de que lhe façam perguntas. E esqueça-se sempre dos seus cartões de visita. Desta forma, dificilmente alguém voltará a contactá-lo a si com questões complicadas.

Nunca se ofereça para fazer nada. Você não tem tempo!

Está provado que, na maioria das vezes, a evoluída técnica “Não estou aqui” é bem sucedida durante toda uma vida laboral. No pior dos cenários, o seu Chefe aperceber-se-à de que você não faz nada, e, impossibilitado de o despedir, seguirá o único caminho possível: despachá-lo. É assim que você será promovido para um lugar superior, noutro departamento, que ainda não o conheça. Recomece todo o processo, e pode ter a certeza, será sempre promovido até ao limite da sua ignorância. Ou da sua esperteza de rato, que sabe muito bem que pode viver toda uma vida à custa dos idiotas que acham que ter brio profissional é realmente bom.

Digam-me que há mais...!


Trabalho no 9º andar. Há dias, acabados de chegar do almoço, subi no elevador com um colega. À medida que íamos passando os andares, ele ia carregando nos botões que lhes correspondiam. Passámos o primeiro, ele carregou no primeiro, passámos o segundo, carregou no segundo, e assim por diante, até chegarmos ao 9º andar, onde ainda carregou no 10º andar, o último do edifício. Confesso que demorei uns instantes a perceber o objectivo. E a sua grande missão, qual era? Fazer com que a próxima pessoa que descesse no elevador tivesse que parar em todos os andares sem excepção, até chegar ao rés-do-chão. Observei perplexa o ar satisfeito e orgulhoso com que ele ia carregando em cada botão. O sorriso esperto, como se aquilo tivesse muita piada. Como se fosse uma piada esperta!
Confesso. Não fui capaz de ver o interesse em pregar uma partida a alguém que não se conhece, quando ainda por cima nem sequer se vai lá estar para ver o resultado. Mas ele cumpriu estoicamente a sua missão e saiu como um pavão emproado, como quem tinha sido “supé-giroooo”!
E quando eu me deixei ficar ao pé do elevador, com a porta aberta, para desmarcar os botões todos, ainda me olhou num misto de censura e pena, “desmancha-prazeres, não sabe reconhecer uma piada tão gira! Há pessoas que nunca vão chegar mesmo ao meu nível de intelecto...”
Ok, digam-me que há mais na vida do que isto. Digam-me que há coisas que realmente têm piada! Digam-me que nem toda a gente ocupa os seus minutos livres a aperfeiçoar a arte da idiotice. Digam-me que há pessoas que não tiram aquela satisfação salivada só pela ideia de poderem atrapalhar um bocadinho a vida dos outros.
Mas ele tinha razão. Há coisas que eu nunca vou perceber mesmo...

terça-feira, 22 de junho de 2004


E quando a nossa fé na natureza humana está a bater no fundo, aparece alguém que nos ajuda em qualquer coisa, pequenina que seja, sem pedir nada em troca. Alguém que olhou por nós sem sabermos porquê. E nessa breve sensação de que nem sempre temos que estar atentos 360º à nossa volta, de que às vezes alguém nos segura e nos impede de cair, e de que quando caímos, nem sempre batemos no chão, nessa breve sensação restabelece-se a nossa confiança. Na sensação reconfortante de que nem sempre somos obrigados a depender só de nós, renasce a nossa fé.
Ela não soube o que fez. Mas por causa dela, renasceu a minha hoje.

segunda-feira, 21 de junho de 2004

A falta que fazia...!


Numa altura em que somos invadidos, comprados, ultrapassados pelos espanhóis, esta vitória teve um sabor especial. E fazia falta ao alento português. Soou o apito final e foi ver-nos correr, rua acima, rua abaixo, de bandeiras agitadas, foi ver-nos saltar para os carros e entrar felizes para os engarrafamentos, foi ver-nos ir para as janelas gritar “Portugal”. Não vale a pena negar. Nada nos dá uma emoção tão imediata como o futebol, não há para nós outro lugar onde se lute, se perca e se vença com tanto sentimento. Em nada existe a mesma euforia da vitória. Por isso, em nada se encontra a mesma vontade de nos mostrarmos portugueses. Não ganhámos nada. Mas vencemos. E numa altura em que o país luta para se levantar a todos os níveis, isto fazia-nos falta. Fazia-nos mesmo falta!!

sexta-feira, 18 de junho de 2004


Quando recebemos o nosso pacote de vida, ele devia vir com água, ar, comida, saúde, amor... e música. Toda a nossa vida devia ter uma banda sonora. Para que quando chorássemos, o fizéssemos do fundo da alma, para que quando ríssemos estivéssemos totalmente libertos, para que quando estivéssemos felizes, pudéssemos sentir o nosso coração quase rebentar, para que quando estivéssemos apaixonados conseguíssemos sentir-nos pairar no ar, para que quando nos sentíssemos confusos soubéssemos procurar no fundo do nosso ser! Descer a mesma avenida de há anos poderia parecer sempre diferente. Amar a mesma pessoa seria sempre a primeira vez. Almoçar com as mesmas pessoas seria sempre novidade. Trabalhar 8 horas por dia pareceria sempre menos tempo.
Não interessa que música seja, interessa que nos toque, que nos levante. A música acentua a vida. Poucas são as vezes em que o silêncio consegue fazer o mesmo. Nas outras, os momentos passam com menos sabor. E eu queria sentir sempre a vida viva, explosiva, cheia de significado, transbordante de sentimento. Por isso, se eu pudesse acrescentar um item ao nosso pacote de vida, seria sem dúvida... ter banda sonora.

quinta-feira, 17 de junho de 2004

Se perdermos...


... não vou tirar a bandeira. Não foi eu que a pus na varanda, mas vou ser eu que vou impedir que a tirem. Porque conseguimos trazer o Euro para Portugal, porque os estádios ficaram todos prontos a tempo, porque a organização até está a correr bem, porque o nosso país está a ter projecção mundial. Porque noutros campeonatos, vou voltar a torcer por nós. Porque Portugal não é só futebol. Porque se perderem eu vou continuar a ser portuguesa, e porque vou continuar a ter orgulho nisso.

quarta-feira, 16 de junho de 2004

Duas caras


Para ele, crescer tinha-se revelado um processo doloroso, ou dolorosamente revelador. Aos seis anos, no recreio da escola, viu o melhor amigo gozado pela turma inteira por usar óculos, aos dez via-se ficar para último quando se escolhiam as equipas na aula de ginástica porque era gorducho, aos 13 viu o irmão mais novo ser excluído dos grupos de trabalho porque as notas dele não eram boas, aos 16 foi ele gozado porque ainda não era tão alto como os amigos, aos 17 viu a irmã de 15 ser ignorada porque não usava as mesmas roupas das amigas. Aos 18 deu graças a Deus por ter finalmente atingido a maioridade, concluiu que a infância podia ser tão doce quanto cruel, e desejou que houvesse de facto neste marco etário uma diferença para melhor, que aquela crueldade inconsequente de quando somos novos tivesse ficado lá, naqueles primeiros anos. Prometeu a si mesmo que ia tentar ensinar os filhos a serem tolerantes e livres de preconceitos, e continuou em frente.
Ao princípio assim foi. Pareceu-lhe que a discriminação era afinal coisa de quem ainda não conhecia o mundo, de quem cresceu sem orientação, de quem ainda não sabia pensar antes de falar, de quem pensava sem fundamento, um privilégio inalienável dos mais novos.
Aos 23 chegou ao mercado de trabalho. E o contacto com estas novas pessoas foi de facto diferente. De repente já ninguém dizia o que pensava. Correcção: já ninguém dizia o que pensava de uma pessoa, à frente da dita. Agora toda a gente parecia dar-se bem com toda a gente. Agora só havia sorrisos para todos. Agora só havia palavras bonitas e atenções uns para com os outros. Agora só havia amizades, só havia compreensão, só havia tolerância. As verdades diziam-se e partilhavam-se, com todos menos com aquele de quem se falava. Começou a ficar confuso. Se antes havia alguma crueldade, também havia, é certo, sinceridade. Agora nada se falava, tudo se comentava em “segunda fila”, em murmúrio. Se num minuto o Joaquim dizia mal da Fernanda, no minuto seguinte ia almoçar com ela em amena cavaqueira, como se fossem os melhores amigos. Porque lhe convém. Convém ao Joaquim, porque a Fernanda o pode ajudar a destacar-se no emprego. Convém à Fernanda, porque a amiga Júlia até está de baixa e ela precisa de um aliado, para se juntar a ela contra o Amadeu, que anda à caça do cargo de chefia há anos. É conveniente dizer mal de alguém, porque assim se constróem os grupos, assim se fazem aliados. Juntos contra alguém de quem se pensa e diz mal. Mas como é importante manter todas as ligações, porque nunca se sabe quando alguma nos pode vir a ser útil, mantenhamo-nos fiéis às nossas convicções, às nossas opiniões, apenas em segredo. Deixemos todos os caminhos em aberto, sejamos sempre simpáticos, sorridentes, amigos, mesmo com aqueles a quem dedicamos as nossas mais maldosas palavras.
Aos 30, já tinha assimilado algumas destas técnicas, porque sem elas, voltava a ser o rapazinho gorducho que era deixado para último, na escolha das equipas de voleibol. Com a diferença de que agora toda a gente continuava a sorrir-lhe, a dar-lhe palmadinhas nas costas, e a dizer como ele é um gajo porreiro.
Aos 35, percebeu que não tinha grande talento para aquilo, e que não queria falar e sorrir às pessoas de quem não gostava. Queria dizer a verdade toda, quando não concordava. E assim fez. E assim foi ficando mais isolado. Escolheu ir almoçar sozinho, em vez de mal acompanhado. Escolheu trabalhar sozinho em vez de com os que se encostavam a vê-lo trabalhar.
Mas estar sozinho também não era caminho. E aos 40 conclui que só havia uma forma de conseguir continuar. Ter duas caras. Ser duas pessoas. E assim foi. Com a família e os amigos, tinha uma, a verdadeira. No trabalho tinha outra, plástica, sorridente e bem disposta.
E foi assim até à reforma. Fez “colegas”, foi aumentado, depois promovido. Aos 65, quando deixou de ter que se levantar todos os dias de manhã para ir trabalhar, queimou a segunda cara dentro do caixote do lixo que tinha debaixo da secretária, e foi a cada uma das pessoas de quem não gostava, das pessoas que viu trair e fingir. Pôs a sua verdadeira cara sobre o pescoço, e disse exactamente o que pensava. Finalmente. Aquilo fez-lhe ganhar mais uns anos de vida! Despediu-se dos que gostava, e virou costas. Para trás ficou um teatro, vivido oito horas por dia, durante tantos anos. Pela frente veio o futuro, finalmente com a única cara que Deus lhe deu.

sexta-feira, 11 de junho de 2004

Orgulhos tolos?


Entro na minha rua e há uma onda de verde e vermelho nas janelas, nos carros, nas cabeças e nos troncos das pessoas, parece-me bem até no coração destas gentes que há muito tempo não se lembravam que eram portuguesas. A minha rua repete-se por aí, pelo país fora. E embora eu não possa ver todas essas ruas, sinto qualquer coisa. Sinto estranhamente no ar uma pertença. Algo que nestes anos de vida que vou juntando, nunca tinha sentido. Não interessa se o Kinas parece uma versão do Dragon Ball dos anos 50, não interessa se o verde e o vermelho até não combinam nada, não interessa se os castelos das nossas bandeiras parecem pagodes chineses, não interessa. De repente todos se lembraram que são portugueses e já ninguém tem vergonha. Pelo contrário, sente-se orgulho. E eu, um bocadinho virgem deste sentimento, deixo-me contagiar. Porque gosto. Gosto que as pessoas gostem de ser de Portugal, gosto que gostem de o exibir. E se cá dentro sabemos que somos um povinho ainda muito “zé”, lá para fora somos tudo o que há de melhor (que também o temos). Que ninguém diga mal de nós! Somos os maiores! E agrada-me que o clubismo tenha dado lugar a uma força maior, ainda que temporária.
O pior é se o Figo falha um penalty, é se o Ricardo leva um frango, é se a Espanha vence a Portugal, é se nos ficamos pelas primeiras fases. E pronto, lá cai por terra o orgulho nacional, lá vem o atirar culpas ao treinador, aos jogadores que falharam porque são os do Benfica, ao guarda-redes porque não é o Vitor Baía...
Mas vou deixar-me ir um pouco nesta onda que nunca tinha batido com tanta força na minha praia. Que há muitos anos não banhava assim estas costas. Pena é que na crista desta onda só venha uma bola de futebol.

segunda-feira, 7 de junho de 2004

Pele de mulher


Era um fim de tarde como os outros. Começava a cair mais uma noite de Outono, e já havia pouca gente no escritório. Estava eu, dois ou três colegas de outros departamentos, e o Chefe, fechado na sua sala, e a sua Secretária. Já eu estava a pensar no caminho de casa, quando a Secretária me chama: “O Chefe quer falar contigo.” O meu coração palpitou, como palpitava o coração de todos os que eram subitamente chamados por ele. Porque ele era como a figura típica do Chefe de Polícia dos filmes de Hollywood: impaciente, irritadiço, ríspido, ultra-exigente, mau, pior que o “Deus me livre”. E toda a gente tremia como vara verde, quando recebia o chamado dos infernos.
Respirei fundo e lá fui, qual cordeiro para o sacrifício, revendo todos os meus últimos trabalhos numa tentativa de prever qual teria sido o meu erro. Mas o atravessar da porta para dentro da toca do lobo trouxe-me um ambiente muito diferente do que eu esperava. Por trás da secretária de trabalho, e da papelada toda escrupulosamente organizada, estava um homem com um sorriso nos lábios, que me convidou a sentar e a estar à vontade, porque precisava de falar comigo. “Vou ser promovido para um cargo superior num novo departamento, e gostaria que você fizesse parte da minha nova equipa.” Os meus pensamentos voaram sem controlo pela sala! Vindo daquele homem, aquilo era um enorme elogio! Aquilo era um pavor! Aquilo era estranho. Aquilo era... difícil de aceitar. E difícil de não aceitar. Com os elogios sobre a minha forma de trabalhar, sobre o meu potencial, sobre a forma como me tinha revelado, a decisão começou a inclinar-se para o “sim”. Feliz por estar a ter o meu esforço reconhecido, perguntei então para que função ele me convidava. E foi aí que as terríveis palavras foram proferidas. “Sabe, estive muito hesitante. Pensei dar-lhe a si o cargo que acabei por dar ao Pedro Santos. Mas fui egoísta, e quero que seja minha assistente”.
Foi nesse dia que eu a senti pela primeira vez na pele. A discriminação. Se eu fosse homem, teria ido gerir projectos, teria tido oportunidade de subir na carreira. Mas eu era mulher. E assim cabia-me o lugar de Secretária. Um homem com capacidade é promovido. Uma mulher com capacidade é óptima para ter como Secretária. Esta foi a primeira vez que o senti claramente. E com os olhos abertos para essa triste verdade, nunca mais deixei de reparar em todas as vezes que isso continuou a acontecer. Perdi a inocência de achar que era intelectualmente igual a toda a gente, e que toda a gente achava o mesmo. Perdi a inocência de acreditar que os caminhos que se me abrem são os mesmos do colega do lado. Perdi a inocência de trabalhar crente no facto de que me basta ser profissional e eficiente. Apercebendo-me disso, acrescentei criatividade, formação, mais trabalho, mais resultados. E... permaneço a mulher que foi Secretária. Permaneço mulher, ligada aos estereótipos de séculos, presa às funções para mulheres. Permaneço mulher, no inconsciente de muitos ainda sem lugar igual numa equipa de homens. Já perdi a conta às vezes que eu trabalho e o colega do lado é reconhecido. Como se não fosse possível uma mulher fazer tal trabalho. Só pode ter sido ele...!
Não quero ouvir negação desta verdade, não quero ouvir discurso politicamente correcto, não quero ouvir que já não é assim. Ouvi há dias que uma mulher, para conseguir o mesmo caminho que um homem, tem que ser três vezes melhor. E poupem-me os títulos de feminismo. Esta é a minha pele. E eu sinto muito bem o que lhe fazem.

quinta-feira, 3 de junho de 2004


Há coisas que o melhor é convencermo-nos que não nascemos para viver. Não vale a pena viver na sua expectativa, não vale a pena imaginarmos como seriam, não vale a pena sonhá-las. Temos que saber discernir aquilo para que fomos feitos e aquilo que vida provavelmente nunca nos trará. E pôr no lugar dessas coisas, outras diferentes, que talvez possamos de facto vir a experimentar. É uma patetice esperar por aquilo que se desenha tão diferente à nossa frente. O campo das grandes expectativas é um campo minado de desilusões. E o melhor mesmo é não pisar nenhuma.
Se algumas grandes coisas não são para mim, façam-me parar de sonhar, e ponham-me a lutar pelas pequenas.
Ainda assim, tenho uma esperança. De que, se não sonhasse com as grandes, talvez as pequenas não acontecessem.

quarta-feira, 2 de junho de 2004

Finalmente sei para que servem...!


... os palavrões. Além de acompanharem tão bem a batidela do cotovelo na esquina da mesa, a pancada do dedo mindinho na perna da cama e a cabeçada certeira no canto da porta do armário da cozinha, revelaram-se hoje tão úteis onde? No trânsito, é claro! Porque eu vou sempre dar prioridade aos veículos que circulam nas rotundas, porque vou sempre parar nos sinais amarelos, porque se vir alguém aflito vou sempre deixá-lo passar.

E hoje de manhã, cedi. Quando parei para entrar numa rotunda, dando prioridade a uma mota que já lá circulava, ouvi buzinar histericamente atrás de mim, e pelo espelho retrovisor só vi braços agitando tresloucados e por trás deles uma cara de mutante descontrolado. Então, levantei o braço e juntamente com as palavras “vai-te f****”, fiz... o “dedo”.

Pronto, é verdade. Cedi. A verdade é que esta é a única linguagem que estes mutantes, escondidos dentro das suas banheiras, compreendem. E por instantes desci ao inferno das suas vidas mesquinhas, impacientes e frustradas, só para poder comunicar com eles. Não foi construtivo. Mas soube bem.

terça-feira, 1 de junho de 2004

Pelo canto do olho


Foi há muito tempo. Ele era dela. Foi. Quis ser, durante muito tempo. Foram anos de cumplicidade construída sem esforço, que veio à superfície naturalmente, e se enraízou sem ser preciso regar. Transformou-se no fundamento da existência de ambos. Transformou-se num mundo perfeito, onde ninguém sabia penetrar, onde ninguém teria capacidade de chegar. Transformou-se na sua realidade, diferente da dos outros, especial, superior à dos outros, superior ao conhecimento e à sabedoria dos outros. Anos vividos no topo do mundo, numa aliança inquebrável, imutável.
Do topo do mundo ao desencanto foi um passo invisível. Como uma sombra escura, que se embrenhou imperceptível na alma de cada um. Porque num mundo perfeito, mais depressa que o amor, ganha força a intolerância. A saturação pelas falhas agigantou-se velozmente. Num mundo perfeito, espera-se receber tudo sem ter que dar muito. O egoísmo ocupou o espaço da compreensão. Num mundo perfeito, podemos ser tudo o que queremos. A cedência definhou e deu lugar à exigência.
E assim, num passo invisível, a cumplicidade deixou de servir, serem um do outro já não era suficiente, já nem sequer havia desejo de que isso fosse totalmente verdade. E o caminho que se via único no horizonte bifurcou-se. E cada um seguiu o seu, ainda que sem se perderem de vista. E aquele futuro certo, aqueles planos, começaram a deixar de acontecer. E se ela preferia acreditar que todos os caminhos que tomou e que a levavam para mais longe, na verdade a trariam de volta ao caminho comum, ele viu-a apenas cada vez mais distante, cada vez mais pequenina, a perder de vista. E quando ela quis voltar ao caminho comum, a estrada estava vazia. E o caminho dele já se cruzara com outro.
O que faria ela agora com todo o espaço aberto para a frente, no seu horizonte, aberto para um caminho que não viria a ser construído? Espaço dolorosamente vazio, apenas repleto de abandono, e da certeza de ter voltado tarde demais. Ninguém espera para sempre. Ninguém é o único. Agora a aliança tinha sido invadida. Agora o lugar dela já não lhe pertencia. Agora o mundo perfeito era de outra pessoa.
E agora...? Se corresse muito, se voltasse atrás para lhe gritar aquilo que nunca lhe disse, talvez... Será que ele ainda olhava para trás, à espera? Ou será que o caminho para trás era areia movediça onde ele não voltaria a pisar? No medo da resposta, na falta de coragem para a pergunta, deixou-se ficar no seu caminho vazio, a vê-lo afastar-se, até ser um ponto indistinto no horizonte, até o perder de vista.
Naquela manhã, sem saber porquê, contemplando os cabelos louros agora brancos, a pele perfeita agora enrugada, o olhar azul agora menos brilhante, lembrou-se. Lembrou-se daquele mundo que nunca tentou recuperar, daquele caminho que nunca lutou para construir. Nunca mais soube nada dele. Nunca soube se foi feliz. Nunca soube se ele voltou a pensar nela. Nunca soube se ele continuou a olhar para trás. Sem a coragem de falar, ela seguiu um novo caminho. Mas o pé nunca deixou de lhe fugir para aquele caminho que lhe ficou sempre à vista pelo canto do olho.