segunda-feira, 30 de agosto de 2004

Os bolsos cheios

Trago os bolsos cheios de sonhos, desde sempre. Antes recolhia-os a todos e levava-os comigo, porque os sonhos não eram de desperdiçar. Nunca os contei e mal dava por eles. Apanhava-os perante uma imensa vida a perder de vista, cheia de espaço para preencher e tempo para alcançar. Eram como balões, que me levantavam os pés do chão e me levavam, que me mantinham perto do sol sem queimar as asas. Mas um dia dei por eles. Quando finalmente lhes senti o peso. E como um bote náufrago com demasiada gente, tive que decidir os mais importantes, e lançar os outros à água. Deixá-los para trás. Durante tanto tempo, “sonho” foi uma palavra mágica, cheia de tudo o que eu podia ser. Hoje sonho sim, com outras dez vidas, pelas quais pudesse espalhar o conteúdo dos meus bolsos. E em cada uma ser algo diferente, numas aprender, noutras arriscar, noutras perder-me, noutras encontrar-me noutros lugares. E em cada uma seguir um sonho diferente. Mas só tenho esta, e esta nem sequer vem com papel de rascunho. Por isso caminho meio às cegas, e escolho o certo pelo duvidoso. Aquilo que sempre disse que nunca iria fazer. Porque eu era diferente. Era eu que ia levar a vida à frente, e não ela que me ia levar atrás. De alguns sonhos ainda senti o perfume. Outros tomei-lhe o sabor. Outros nunca sequer os vislumbrei. Acabei por trocá-los quase todos pelos palpáveis. Acabei por ser igual.
Mas algures aqui por de trás de mim, ou talvez pairando sobre a minha cabeça, ainda os sinto. Minúsculos, longínquos, mas sinto-os vivos como sempre. Como se me estivessem no sangue. E a esperança de ainda ser diferente. Por vezes são o peso que me faz cair no chão de cansaço, outras o ar quente e mágico que me ergue acima da copa das árvores.
Afinal é isso que eles são. Não são os pontos do caminho que nunca cruzamos, não são os marcos de objectivos frustrados. Os sonhos são a luz que me vem cá de dentro, são a certeza de que o dia que se segue pode ser meu, são mesmo aquilo que me move, são a prova de mim mesmo. Os sonhos não são pontos ínfimos no horizonte. Estão aqui comigo, são a matéria de que sou feita. E até hoje, eu ainda não tinha percebido.

quinta-feira, 26 de agosto de 2004

Clones de Deus

Anteontem a televisão agarrou-me pelos colarinhos e atirou-me para o futuro. Um futuro bizarro, onde se perderam fronteiras e o real é resultado do artificial. E foi a mancha daquelas quatro vacas que me fez sentir uma espécie de fascínio aterrador. A ovelha Dolly já é história antiga, e eu não sabia. A mancha branca quase igual sobre o dorso negro daquelas quatro vacas quase iguais, iguais também a uma vaca mais velha, excelente produtora de leite, mostrou-me a mancha negra sobre o futuro. Eu não sabia.
Um cientista, algures no meio dos Estados Unidos, não cria vacas leiteiras – replica-as, a partir de uma única vaca original, que produz 3 vezes mais leite do que a média. Mas isto não é nada. Um homem surge no écran, com as lágrimas nos olhos, proclamando uma bizarra luta. Após ter perdido o filho de ano e meio num acidente hospitalar, passou a batalhar com a sua esposa pela autorização da clonagem do seu filho morto, por uma clínica especializada em clonagem. Arrepiante. Recriar uma criança morta? Seria a mesma? Seria outra? Seria de facto real? Ou seria a distorção total da vida como a conhecemos? Recusei a simples ideia de imediato.
Mas isto continua. Um homem, pertencente a um grupo defensor da clonagem humana, foi para um memorial à Princesa Diana com um cartaz que reclamava “Clonem a Princesa Di!”. Caí da cadeira. Ainda não me tinha apercebido bem da panóplia de possibilidades aterradoras e doentias que a clonagem traz. Há muito que ficou para trás o simples objectivo de recriar órgãos humanos para substituir os doentes. Não sei sequer se alguma vez esse objectivo terá de facto existido ou foi sempre apenas uma justificação. A fome de ser Deus é demasiado imensa e poderosa. Mas como qualquer clone, nós, os clones de Deus, seremos sempre imperfeitos, e muito, muito mais fracos.
Também dentro de uma vaca, foi colocado o embrião de um clone de uma espécie de búfalo em risco de extinção. Eis uma razão válida, aparentemente. Recuperar espécies extintas. Primeiro matámo-los, agora trazemo-los de volta à vida.
Estava eu convicta da minha condenação a esta interpretação do papel de Deus por maus actores, quando surge um outro grupo de cientistas. Estes fazem clonagem de... animais de estimação. Quando saiu a notícia de que tinham clonado um gato, foram invadidos por cartas e emails de pessoas a pedir para que os seus próprios animais de estimação, uns mortos, outros vivos, fossem clonados. As pessoas queriam rever os seus animais de estimação. Outros não queriam perdê-los. E foi aí que subitamente eu própria fui capturada pela possibilidade. Poderia eu voltar a ver o meu Nicky e a minha Nina? Poderia eu voltar a abraçá-los, senti-los, brincar com eles, vê-los correr, contemplar-lhes novamente o olhar? A sensação não de vencer a morte mas de a ludibriar e recuperar o que para sempre me fora tirado venceu-me. Se fosse possível, confesso, hesitaria mas acabaria por não resistir a trazê-los de volta. Poderiam não ser eles, mas eram eles. E a ilusão acabaria por ser absorvida pela realidade.
Não sei o que isto quer dizer. O dia em que passarmos a perna à morte, o valor das coisas vai desaparecer. A responsabilidade pela vida vai ela sim morrer. Deixaremos de ser únicos? Deixaremos de ser insubstituíveis? O nosso próprio valor vai relativizar-se?
Não sei. Sei que é um caminho irreversível, demasiado tentador para o homem não seguir, talvez mais uma maçã de Adão. Mas se fosse possível... se fôr possível... seriamos nós capazes de resistir a trazer de volta aqueles que um dia amámos...?

terça-feira, 24 de agosto de 2004

Pontapé de canto

Sábado à tarde, num restaurante em frente ao mar, pouca gente, janta-se boa comida, à luz do pôr do sol. Um enorme ecrã de televisão debita as notícias do dia. Pela imagem passam os testemunhos da explosão de uma bomba em Sanxenxo, na Galiza, o susto do incidente com o avião da TAP, os corpos dos sete palestinos mortos num ataque israelita, as crianças de S.Tomé que nunca viram brinquedos nem três refeições por dia, as vítimas de um atentado no Iraque, um carro e três vidas desfeitas no IP5. Os rostos mantêem-se impassíveis, os olhos meio distraídos, janta-se com a displicência pelo mundo sentada à mesa e com a arrogância de quem tem a paz por garantida. Subitamente, o jogo Porto – Benfica. Os olhos abrem-se, as bocas rasgam-se em sorrisos e protestos, as vozes elevam-se em elogios e ironias, o restaurante sai da letargia do fim de uma tarde de Verão, para os orgulhos que vêm agarrados às bolas de futebol. E o resto do mundo chuta-se para canto.
Apresento-vos o povo português. Muitos outros serão com certeza também assim. Mas este é o meu. E para já, é este que eu vejo viver fechado entre quatro linhas. E sem árbitro!


O sono tranquilo de uma criança é dos momentos mais belos a que podemos assistir.

quinta-feira, 19 de agosto de 2004

Bonecos de plástico

Nunca cresci. Não nisto. Às vezes acho que o mundo ainda são os bonecos de plástico com que brincava no recreio, a família do urso Mischa que ia a banhos no lavatório lá de casa, os Aristogatos da minha caderneta de cromos, o Luke e a Leia da Guerra das Estrelas a lutarem no vaso das plantas da minha mãe. Anda uma pessoa anos na formação da personalidade a aprender o preto e branco, e depois um dia abre os olhos e é tudo em meios tons de cinzento. E pronto, desenvolve-se um caso de Daltonismo grave, irrecuperável, e não se consegue ver nada. Afinal, raios partam, ninguém está quietinho no preto nem no branco, parece que toda a gente imbirrou em pôr-se naquela área turva, e eu não consigo distinguir ninguém.
Continuo à espera, mas teimam em não passar Luke Skywalkers pela minha vida. Às vezes ainda me imagino na floresta da Lua de Endor, onde consigo distinguir facilmente os bons e os maus por entre as árvores seculares. E ao meu lado estão pessoas de espada na mão e justiça na alma. Também nunca encontrei nenhum Darth Vader, ninguém puramente rendido ao mal, ninguém a quem possa apontar o dedo e categorizar como pertencente ao lado negro.
Eis as pessoas, boas e más. Todas. Sacam da espada laser e umas vezes resistem com honra, outras emitem um respirar metálico e assustador. E eu aqui fico, sem saber a quem confiar os meus planos secretos. E também não me aparece nenhum mestre Yoda para me orientar.
As pessoas deviam ser boas ou más, para sabermos com o que contamos. Não queria ter que esperar coisas más dos que acho bons, e muito menos coisas boas dos maus que me habituei a não gostar. Não há maneira de as pessoas se encaixarem, nem no preto nem no branco. Nem sequer eu! Dentro de cada um há luz que nos cega e trevas que nos desorientam. Ou talvez eu devesse dizer luz que nos fascina e trevas que nos intrigam...
De qualquer forma, o preto e o branco são produtos da imaginação. Histórias da carochinha. Bonecos de plástico. Aprendemos a separar para depois juntar. E em linguagem de recreio, somos bons e maus. Talvez seja só essa a razão porque não há finais apenas felizes.

segunda-feira, 16 de agosto de 2004

Algo por que esperar

Algo bom, algo emocionante! Às vezes tenho a sensação que a vida não é tanto aquilo que se vive, mas aquilo que se espera viver. A expectativa é um vício, uma cenoura pendurada numa vara à frente do burro, uma justificação para respirar. A espera de algo bom faz o tempo passar mais devagar e mais depressa, faz voltar o sorriso, faz resistir a paciência, faz subir o ânimo. A espera de algo bom põe-nos um objectivo no horizonte, põe-nos à frente um sonho palpável, ao alcance da mão. E se nos esticarmos mais um bocadinho...!
Mas assim que o dia chega, em que o sonho se vive acordado, começa logo a ser envenenado pela ideia do fim. A certeza de que vai acabar. Enquanto não chega, não. Parece que há-de ser para sempre. E assim se vive, a gastar os cartuchos da expectativa, uns atrás dos outros. A perder tempo a desejar que o tempo passe para chegar tal dia. A passarmos meio indiferentes pelos dias em que não há cartuchos em stock. Quando na verdade todas as manhãs deviam ser vividas assim, com a expectativa do dia pela frente. Porque eles próprios, os dias, existirem, já é em si algo bom, por que vale a pena ansiar, todas as manhãs.

sexta-feira, 13 de agosto de 2004

Eles existem...!

Saiu de um sonho qualquer. Ou chegou a nós em algum objecto não identificado. Ou foi Deus que achou que eu estava a precisar de provas. Ou concluiu que poderia finalmente recompensar a minha fé. Eu sabia que eles existiam, eu sabia! Mas não sabia onde. Nem sabia se um dia chegaria a vê-los.
Eles são como eu pensava. Amistosos, sabem sorrir e dialogar. Inteligentes, averiguam problemas e apresentam soluções. Evoluídos, não fazem milagres mas sabem inovar para resolver questões. Têm espírito de grupo, mostram-nos o que sabem e ouvem o que temos a dizer. Profissionais, não se limitam a fazer o que lhes compete mas dão sugestões. Altruístas, ajudam e estão atentos.
Eu sabia que eles existiam, tinham que existir! E um dia, quando eu menos esperava, um deles entrou pela porta e passou a fazer parte de nós. Um profissional. Um elemento competente. Um membro de uma equipa. É o novo programador. Uma benção num mundo cheio de macumbas. Um oásis num deserto cheio de cactos. Finalmente alguém a sério, num espaço cheio de nadas. E eu até posso comunicar com ele. Finalmente. Graças a Deus...!

quarta-feira, 11 de agosto de 2004

Este lugar

Se eu pudesse parar o tempo, parava-o aqui, no meu bairro. Criava ali, num ponto do tempo, uma espécie de bolsa onde pudéssemos viver sem envelhecer mais, crescer sem termos que nos afastar. Se calhar fazia dele uma espécie de Brigadoon, que acordava uma vez de cem em cem anos, e a cada século tudo estava na mesma. E eu ia lá esconder-me, viver para sempre, com a certeza de que todas as manhãs ia encontrar caras conhecidas, sorrisos familiares a perguntar-me como estou. Com a certeza de que nunca ninguém ia desaparecer, com a certeza de que nunca ninguém precisaria de se ir embora para outro lugar. Com o reconforto de que este lugar ia estar sempre ali, para eu voltar para ele. Para eu voltar a casa.
O meu bairro é assim. Nunca foi um bairro bonito. Nunca foi um bairro chique. Nunca foi um bairro de vivendas nem cheio de árvores. Nunca foi um bairro livre de delinquência. Mas é um bairro livre de medo e de vidas trancadas a cadeado. As pessoas reúnem-se nas lojas e deixam-se ficar depois das compras, ficam a conversar à porta dos prédios ou às janelas, nas noites de Verão. As lojas ainda se conhecem pelos nomes, a mercearia é o Sr. Gabriel, a papelaria é a D. Deolinda, a padaria é a Dª Fernanda, o talho é o António, a peixaria é a Menina Ana, até o restaurante chinês já é o Sr. Gao.
Muitos filhos, depois de adultos, deixaram-se ficar, nas casas que eram dos pais, ou em casas compradas junto deles, para ficarem por perto. Não interessa que as casas tenham quarenta nos. Ficaram por ali. Talvez numa vontade subconsciente de que o tempo parasse.
Sei o nome dos vizinhos e dos filhos deles. Conheço-lhes as casas e sei-lhes os empregos. E sei que lhes posso deixar a chave de casa, e que se o meu carro tiver um problema, vou ter muitos deles a resolver-mo.
Pensando bem, talvez o tempo tenha mesmo parado, no meu bairro. Os miúdos já não brincam na rua, como nós, é verdade. Não desenham o Fugitivo na rua nem fazem concursos para ver quem cai mais da bicicleta. Mas o espírito permaneceu incólume ao tempo. Resistiu-lhe ao passar implacável.
Quando me afasto, sinto-me uma peça de um puzzle, em cenários onde não pertenço. E quando regresso saboreio sempre o encaixe com um sorriso e um suspiro. E mesmo se entro em casa e ela está vazia, sei-me sempre acompanhada.
Não queria que a vida me levasse para longe, não queria perder o tempo que resta deste mundo em que sempre existi, não queria perder o meu espaço nesta peça, não queria nunca voltar e perceber que o pano já se fechou sobre ela. Mas se um dia a vida tiver que me levar para longe, vou fingir que o tempo ficou parado, lá no meu bairro. E vou viver sabendo que aquele será sempre o meu lugar.

segunda-feira, 9 de agosto de 2004

Comédia da vida real

Pelo meio do meu sono atravessava-se, insistente, aquela voz demasiado alta e enervada, com uma afectação a esconder a origem humilde. Enervada porque a filha estava nas urgências do Hospital, com ombro e perna dormentes, e sem ninguém saber porquê, com os médicos a atirar a culpa ao “stress”. O “stress”, esse novo culpado, nascido para originar todo o tipo de sintomas estranhos, bode expiatório para quase tudo o que o banco de urgências não sabe explicar. Os ditos bancos de urgências que, à falta de meios ecográficos, fazem radiografias para verificar dores no ventre (sim, esta foi comigo).
A mocita, com a perna presa e o ombro insensível, preparava-se para ter, ora pois, uma consulta com um psiquiatra. Isto após uma noite arrumada com Valium, porque os sintomas eram nervos. E embora não passassem, mesmo depois da dose cavalar de calmante, a teoria manteve-se. Sem outro tipo de análises e mandada para casa no próprio carro, porque até estava em condições de conduzir.
A Senhora, de cachuchos nos dedos e cabelo resistente a ventos ciclónicos, presa durante 3 horas no comboio, passou as ditas horas a ligar a tudo quanto era conhecido, familiar, amigo de amigo, familiar da amiga da filha, enfim. O denominador comum era serem médicos ou enfermeiros. Tinha que estar alguém, nem que fosse apenas vagamente conhecido ou não de todo, naquele Hospital para meter a cunha. Desde todos os telemóveis na agenda até à Ilha da Madeira, as chamadas seguiram-se com um debitar repetido dos sintomas da filha, acrescentado dos comentários de que uma perna sem acção e um ombro sem sensibilidade não são de nervoso. Mas que esta manhã ela ia ter uma consulta com um psiquiatra. E que só lhe fizeram uma radiografia. Os médicos devem ser novos.
Pelo meu sono atrapalhado passavam imagens da filha na cama do Hospital, imagens do médico de férias no Algarve a quem a senhora ligou, da amiga da filha que já nem devia lembrar-se dela, do tio médico na Madeira que por acaso ainda estava a dormir, porque afinal ainda eram sete horas da manhã. Tudo isto girando à volta de uma cunha, baseada no conceito, em muitos casos infelizmente fundamentado, de que os médicos desconhecidos não sabem o que fazem, mas que os médicos amigos sabem. E que os desconhecidos que sabem lutam em vão contra a falta de meios. Como em tudo o resto, pela saúde metem-se cunhas, onde quer que elas estejam. Na verdade, acho que, embalada pelo movimento do comboio, sonhei com alguma comédia grotesca, onde nós, afinal público, nos rimos até cair da cadeira do absurdo impossível que seria ter que chegar a este ponto. Meter cunha pela saúde. Haja quadro mais surrealista.
Ainda assim, talvez devesse ter ficado com a agenda telefónica da senhora.

sexta-feira, 6 de agosto de 2004

Finalmente um dia assim

- É só para dizer que... – a voz estéril e monocórdica do outro lado da linha parecia preparar-se para dar a má notícia - ... você ganhou o concurso para a vaga a que concorreu.
Não aconteceu comigo, mas aconteceu com alguém, esta manhã. Estou mesmo feliz! Alegra-me quando uma coisa acontece, aparentemente contra todas as probabilidades de manipulação. A verdade é que na maioria dos dias aprendemos que nunca acontece nada de extraordinário, que não é possível remar contra a maré, que numa engrenagem rígida todas as pedras que lá entram se partem, que no mundo das máfias traficantes de cunhas e interesses não há lugar para os bons da fita, que não há milagres, que as coisas são como são. E depois há aquele dia em que tudo acontece ao contrário, ou por outra, como devia ser sempre. Fico feliz quando a vida se lembra de nos mostrar que vale sempre a pena. Vale a pena ter esperança, vale a pena tentar. Vale a pena encarar de frente a possibilidade de perder. E a sensação de vencer, e saber que é possível, é inigualável.
Quase todos os dias, num momento ou outro, aprendemos a encolher os ombros e a baixar a cabeça. E depois surge um dia assim, repleto de esperança e justiça. Era bom que pudesse haver um dia assim, de vez em quando, em todos os cantos do mundo, onde nem o eco dessas palavras chega. Hoje tive essa felicidade. E é nestes dias que eu sinto que posso encarar tudo. É nestes dias que eu gosto mesmo da vida.

quinta-feira, 5 de agosto de 2004

Réguas partidas

A maior parte das pessoas parece ter a necessidade de medir tudo. Andam de fita métrica no bolso, prontos a tirar as medidas a tudo, ao dinheiro, às amizades, aos amores, às pessoas, aos carros que têm, às casas que têm, aos trabalhos que conseguiram, a tudo. Há uma necessidade de medir e comparar, como se pudesse haver uma escala para tudo, igual para todos. Nos bens materiais ainda poderia existir, mas isso não dá um resultado do sucesso. Para mim ter um carro grande e potente sempre esteve fora da lista de objectivos pessoais, para o vizinho do lado era o grande sonho. Quem pode dizer que ele é mais bem sucedido do que eu, só porque ao lado do Mercedes dele está um Fiat pequenino e velhote? Mas isso é uma história velha. O que me faz mesmo confusão é quererem medir os sentimentos. Ainda por cima com base em factores específicos e que nada têm a ver com a alma.
Hoje ao almoço ouvi uma frase que considero das mais repletas de ignorância que já ouvi. Um homem de 31 anos, com cara de miúdo de coro da igreja, declarou perante todos que duas pessoas que se casam e mantêm contas bancárias separadas não têm uma relação a sério. Segundo este especialista em amor, isso significa falta de confiança, um no outro, e na relação que têm. Olhei-o com alguma perplexidade. Confesso que tive profunda dificuldade em perceber o raciocínio. Mais ainda quando ouço dizer que fazer o que ele fez, casar e ter apenas uma conta com a esposa, porque confiam um no outro, é “muito bonito”. Também não sei o que é que a beleza de um sentimento tem a ver com as contas bancárias. Não será mais bonito quererem passar a vida juntos? Manter independência significa não amar verdadeiramente o outro? Eu não sabia.
Eu cá nunca medi o amor. Sinto-o, nas mãos dadas no hipermercado, no beijo quente no pescoço à varanda, nos sms durante o dia, nos momentos de silêncio, nas horas a conversar, nos fins do dia em que uns braços me fazem sentir que o resto não importa, no aconchego no sofá debaixo de um cobertor numa noite de Inverno, na sensação do porto de abrigo incondicional. O dinheiro usa-se para o gastar com o outro, para ir ter com o outro, usa-se para viver e não para medir. E usa-se com nós mesmos, da forma que bem entendermos. Confesso que senti alguma pena de que haja quem precise de juntar a conta bancária pessoal com o outro, para sentir que tem uma relação a sério. Já sei que hoje em dia o dinheiro serve para tudo, é tudo. Mas teremos nós que juntar o nosso dinheiro com o do parceiro, para oficializar o amor?
Haverá uma estatística que mostre que os casais com apenas uma conta bancária conjunta estão casados mais anos do que aqueles que preferem manter contas separadas?
O amor vive-se, cada um da sua maneira, não se compara nem se mede. Aquela declaração espelhou um tipo de “pré-conceito” meio retrógado que eu pensava extinto, pelo menos nas gerações mais novas. E espalhado assim, perante todos, soou-me a uma certa arrogância sabedora, que francamente, não fez mais do que provocar-me uma certa azia. Mas tenho esperança que passe. A azia e o preconceito.

quarta-feira, 4 de agosto de 2004

Anjo no corredor?

Quase todas as manhãs – e horas de pequeno almoço, almoço e de saída – atravesso o corredor ladeado por escritórios com paredes de vidro, e por trás de um dos vidros sou brindada com um enorme sorriso e um aceno absolutamente alegres e genuínos. Às vezes faz-me lembrar a sensação de chegar a casa e ter um cãozinho à minha espera, de rabo a abanar. Ela é assim, alegre, leve, sem embrulho nem maquilhagem. Quando conheço alguém, normalmente há sempre uma luzinha de alarme ou outra que acende. Com a Carolina, a única luz foi a do sol, natural. A Carolina é uma mulher jovem, bonita e sensual, que não faz uso de atributos, e não tem pingo de maldade ou interesse. Conversadora e bem disposta, vive sem ódios nem paixões, apenas vive. E todos os dias tem o tal sorriso para me dar. O sorriso que não encontro em mais ninguém. O sorriso de quem está bem. O sorriso de quem não tem queixas, desilusões ou inimizades. Ou tendo-as, não se concentra nelas. Parece uma daquelas personagens de telenovela que eram interpretadas pela Maitê Proença. Boazinha, boazinha! Pensava eu que era criatividade da Globo. E no fim... elas existem! E como nas telenovelas, alguém assim tem que suscitar escárnio e invejas. Porque não há muita gente capaz de viver de bem com a vida e com os outros. Eu pelo meu lado, adoro! Com a Carolina não é preciso fingir, não é preciso ter cuidado, não é preciso estar alerta. Posso baixar as barreiras, sair para fora da muralha. Posso deixar-me ser um bocadinho como ela, durante os minutos em que conversamos. É como um intervalo no paraíso, no mundo do cinismo.
E porque é que a Carolina consegue ser assim? Força interior? Coragem? Inteligência? Não. A verdade é que a Carolina também vive um pouco como o cãozinho, sem noção da maldade, ela vive na superfície. Uma ingenuidade a roçar os laivos do que se poderia considerar uma inteligência menor. Há quem lhe chame burra. Sim? Percorram-se todas estas salas envidraçadas, por todos estes andares de todos estes edifícios e encontre-se alguém feliz como ela. A Carolina é genuinamente feliz e satisfeita. Porque não exige como o resto de nós, porque não complica como o resto de nós. Quando ela me sorri do outro lado do vidro, eu acho que o resto de nós saltou um passo à frente da perfeição e estragou tudo.
Será que eu, complicada, exigente, tantas vezes triste, desiludida com o mundo, trocaria de lugar com a Carolina? Será que eu trocaria a minha mortalidade para ser anjo? Não sei. Por estranho que pareça, provavelmente não. E não sei se um mundo cheio de ingénuos teria piada.
Mas sou felizarda porque encontro a Carolina do outro lado do vidro. E quando eu passo e lá daquele lado ela se vira para me sorrir e acenar, eu ganho um novo fôlego para enfrentar os outros sorrisos, os cínicos, que nunca saberão o que é ser o sorriso da Carolina.

terça-feira, 3 de agosto de 2004

Hollywood no meu pára-choques

O velho estava completamente histérico. Parados na faixa da direita, subitamente obstruída com obras, andávamos um metro de cada vez que o sinal estava verde, à espera que na faixa da esquerda surgisse algum benfeitor que nos deixasse entrar à sua frente. A respirar os tubos de escape, emparedados entre camiões enormes, com a paciência meio derretida pelo calor que saía do alcatrão, é certo que ninguém estava propriamente contente. Mas esperava-se. Pelo espelho retrovisor eu via o velho berrar, gesticular, buzinar. Fiz-lhe sinal para passar por cima e ri-me. Mas o homem não ria, estava demasiado ocupado a consumir-se em fúria e a tentar consumir a réstia de paciência dos outros. E eu, felizarda mesmo à sua frente, era a que melhor assistia à tragicomédia que se passava mesmo atrás de mim. Mais um sinal verde. Do meu pequenino Twingo levantei os olhos para o elevadíssimo altar onde se encontrava um deus camionista, esses donos e senhores da estrada. Timidamente pedi-lhe licença, e o benévolo deus deixou-me passar para a sua frente. Foi num piscar de olhos. Quando olho novamente pelo retrovisor, vejo o velho na sua velha lata branca forçar ao limite a sua entrada na faixa da esquerda, mesmo atrás de mim, à frente do camião. Nem podia crer nos meus olhos! O deus camionista, fazendo-se distraído, não parou de avançar lentamente, até levar o velho e a lata branca à frente, até o carro estar quase completamente atravessado na faixa. A minha perplexidade só durou até começar a ver o carro demasiado perto da traseira do meu, e começar a ouvir o gemer do meu pára-choques!! O camionista não parava de avançar, entalando o velho e a lata de lado, entre a frente dele e a minha traseira! E num ápice perde-se a dignidade. Saltei do carro para fora gritando “O meu carro não!! O meu carro não!!”. Afinal eu não tinha culpa nenhuma. O deus camionista lá nos píncaros, sorria. E o velho? O velho, entalado dentro da lata, berrava, mas parecendo não perceber bem o que estava a acontecer, tentando em vão girar o volante. E o mais importante, sem largar o seu adorado telemóvel! Condescendente com a minha aflição, o deus parou de avançar. Eu entrei no carro a voar, e avancei um pouco. O velho, vendo-se solto, avançou contra a minha cara-metade, que tentava ver se o entalanço tinha provocado danos. E só quando o velho foi ameaçado de levar no focinho é que recolheu à sua insignificância. E com o carro totalmente amolgado do lado esquerdo, deixou-se calado como um rato e cada um seguiu o seu caminho. Do incidente ficou no meu carro apenas uma pequena marca no meu pára-choques que descobri ser de excelente qualidade. E não são todos que se gabam de ter um pára-choques com uma marcazinha de Hollywood.
E foi mais um dia no trânsito lisboeta, que venho a descobrir desde há 5 meses para cá. Já mencionei que adoro conduzir...?