quinta-feira, 31 de março de 2005

A mão pelo pêlo

Passou as mãos pelo pêlo macio e sorriu. No espelho estava a mulher que ela se achava merecer. Sofisticada, bem tratada, de cabelo brilhante e sedoso, chique, famosa, bem sucedida, rica. O nome dela já estava espalhado pelo mundo, ou pelo menos pelas capitais que ela considerava importantes. Trabalhou para isso. No corpo, as roupas nascidas da sua própria imaginação. Ao pescoço as peles permitidas pela fortuna que conseguiu conquistar.
Naquele mundo fechado de aparências e futilidade, de concentração em si mesma e de autismo ao mundo real e aos outros, desenvolvera a imagem polida, leve e ao mesmo tempo competente e batalhadora.
Uma última vez antes de ir agradecer na Passerelle, afagou aquele extraordinário pêlo, digno de ser devidamente apreciado por mulheres e homens. E que o era, graças a ela. Sorriu uma última vez, pronta, e foi colocar-se na liderança das várias modelos que envergavam elas mesmas mais pêlo macio, mais da mesma sofisticação e requinte. Foi de alma cheia de orgulho e um sorriso aberto de simpatia oca que mais uma vez agradeceu os aplausos às suas criações.
Mas aquela mesma alma estava vazia de remorso, de consciência, de um mínimo de civismo, até de um pingo de misericórdia. Incapaz de imaginar, ou pior que isso, indiferente ao facto de que dias antes, o pêlo presunçosamente exibido tinha sido removido dos originais donos enquanto ainda vivos. Que estes tinham sofrido de espancamento para que ela pudesse alimentar a sua vaidade. Que foram esfolados vivos em nome da aparência e da moda.
O nome Fátima Lopes correu mundo pelo talento. Hoje corre pelo menos o país pela declaração orgulhosa:

"Não há nada falso. É tudo verdadeiro desde as raposas aos visons. Nunca disse que era contra as peles verdadeiras. Pelo contrário, sou a favor."

Pessoas como ela tinham o poder de dar o exemplo. Em vez disso optam pela mediocridade, pela mesquinhice, pela futilidade a todo o custo. A crueldade não os assusta. Mesmo sendo elas que a promovem, que a causam, que a alimentam. E que se alimentam dela. Só posso esperar que sejam seres como este que estejam realmente em perigo de extinção. E que, para seu próprio bem, o seu desaparecimento não se dê da mesma forma atroz com que matam, e de que tanto se orgulham de anunciar.

terça-feira, 29 de março de 2005

Virado para a lua

Há um muro no mundo que o divide em duas categorias de pessoas. As que têm sorte e as que não têm. Por outras palavras, o mundo Gastão e o mundo Pato Donald.
Fico sempre fascinada com a facilidade com que algumas pessoas passam pela vida. As coisas – boas, note-se – acontecem-lhes de forma fluída, como se houvesse alguém a encomendar-lhes os dias, conforme a sua necessidade. Tudo é fácil. Não há lutas, não há sofrimento que não dê logo em felicidade, não há coisa que não precisem que o futuro breve não providencie.
Depois, do outro lado, a olhar embasbacados, estão os outros. Os que esperam anos, a vida inteira, às vezes, para conseguir algo. Os que não podem ter uma pontinha de felicidade sem uma pedra na engrenagem. Aqueles para quem as várias peças da vida teimam em não encaixar. Aqueles que não podem distrair-se por um instante sequer e deixar a vida seguir sozinha o seu curso. Os que se habituaram que normalmente as coisas correm mal. E que nos momentos em que lhes é finalmente dado algo bom, desconfiam e sentam-se à espera que qualquer coisa lhes caia em cima.
Aqueles felizes, os que moram lá do outro lado do muro, vivem naquela certeza irritante de que tudo vai resolver-se, porque foi o que vida sempre lhes provou. Já os que moram aqui deste lado... habituaram-se a que não há almoços de borla. A que as coisas nunca vão ser como desejámos. E vive-se com aquela terrível sensação de que os momentos bons em breve nos serão tirados. Ou então muito bem pagos.
Eu sempre menosprezei a sorte. Até porque poucas vezes me cruzei com ela. Mas sempre acreditei que não dependia dela. Que podia lutar pelas coisas e conquistá-las. E até tinha a certeza de que as coisas conquistadas têm melhor sabor do que as dadas. O que nunca devia ter acontecido era ter-me cruzado com os habitantes do outro lado do muro. A arrogância inconsciente com que falam da vida e das suas garantidas facilidades é um abalo grande para os que nasceram do lado de cá. A ideia de coisas boas a surgir como cogumelos, dos problemas que se resolvem sozinhos, não fazia parte do nosso imaginário. E há coisas que nem toda a luta do mundo traz. Só mesmo a Sorte.
Infelizmente, na noite em que eu nasci não havia Lua. Ou então tive a triste ideia de não nascer de traseiro virado para ela. Mas ainda tenho esperança de vir a encontrar neste facto alguma compensação. Ou pelo menos algum sentido.

quinta-feira, 24 de março de 2005

Mourinhos i Modéstias

Quando vejo o José Mourinho falar na televisão, lembro-me daquelas pessoas que nos vêm provar o contrário daquilo que aprendemos. Afinal não vale a pena sermos modestos nem humildemente gratos pelo que temos. Sejamos arrogantes e imodestos, porque a sorte e o talento continuarão sempre connosco. Na verdade, a jogada só lhe traz vantagens. Os adversários intimidam-se, por muito que não queiram. E o mundo dá-lhe toda a atenção. E muito dinheiro também.
Mas porque não? Porque não ser imodesto? Porque não afirmar sem falsas modéstias as capacidades que temos a certeza de ter? Não estou a falar do “Sou tão linda. Tenho umas unhas tão bem cuidadas. O meu cabelo é tão brilhante e sedoso”. Estou a falar de talento, de capacidade. Porque é que viver em sociedade nos obriga a disfarçar os talentos, a constrangirmo-nos com os elogios, a fingir que não achamos o nosso trabalho bom assim tão bom? Porque é que não podemos sentar-nos ao almoço e dizer a todos “Hoje tive uma ideia brilhante!” ou “Hoje fiz um excelente trabalho!” ou “Hoje o meu chefe fez-me um grande elogio”? Até pode toda a gente sorrir e dar os parabéns, mas aposto que na maioria das cabeças fica a ecoar uma palavra. “Convencido!”
Os elogios também estão em fase de poupança, quase em perigo de extinção. E depois, quando nos brindam com um, vem o embaraço da satisfação, e lá temos que fazer aquele esforço sobre-humano para não sorrir abertamente. E pronto, em vez de um sorriso, sai aquele tique nervoso a cheirar a presunção.
Na verdade, socialmente, as pessoas que afirmam sem panos quentes as suas virtudes tornam-se intragáveis! Provavelmente as únicas pessoas com quem podemos ser assim são os nossos pais, que adoram o reconhecimento de que geraram seres fantásticos. E eventualmente o parceiro amoroso, que supostamente já acha que faz parelha com um ser maravilhoso. Para todos os outros, pessoas “Mourinhos” são insuportáveis.
Eu também não gosto delas. Mas admita-se. Todos nós nos achamos melhores que os outros em alguma coisa. E que deve ser bom viver sem ter que fingir que não achamos, lá isso deve.

sexta-feira, 18 de março de 2005

Tudo Porra de Mal!

Nos livros, diz que é isto que acontece por dentro:
“Na quarta semana do ciclo, os níveis de estrogénio e de progesterona diminuem. Diminui também a produção de endorfinas.”
E diz que é isto que acontece por fora:
“Nesta fase surgem os sintomas decorrentes da diminuição dessa droga fisiológica, tais como ansiedade, tensão, cólicas abdominais, cefaleia, etc.”
Mas não há livro que possa explicar o que realmente se passa. 75% das mulheres sofre dela, da T.P.M. A probabilidade de eu não cair neste grupo era portanto mínima.
Demorei anos a perceber que a tinha! De vez em quando, eu tornava-me abismalmente gorda. De vez em quando, a vida era um buraco negro, nada do que eu fazia valia a pena, não nascera para ter sorte, não tinha qualquer utilidade neste mundo, qualquer mínimo problema era um sinal do meu destino lúgubre. Não havia nada no guarda-vestidos que me ficasse minimamente bem, até era uma vergonha sair à rua! As pessoas eram irritantes, não havia paciência para ninguém. Chorava por qualquer coisinha. Toda a gente parecia mais feliz do que eu. E eu nunca ia chegar a lugar nenhum. E uns dias depois, subitamente o mundo já era outra vez um lugar brilhante, cheio de oportunidades, e eu já era outra vez uma mulher talentosa e cheia de potencial!
Foi-me difícil perceber que havia aqui um padrão. Que havia um espaço de tempo sempre igual entre uma fase e outra. Valeram-me as sit-coms americanas, em que o afinal célebre “P.M.S.” justificava em tom cómico os ataques de fúria femininos.
Com as dores de mamas, de barriga e de cabeça posso eu bem! Não posso é com o mundo negro em que habito uns três ou quatro dias por mês. Depressão uma vez por mês é demais!
Mas a Tensão Pré Menstrual é implacável. Uma vezes mais, outras vezes menos intensa, mas raro é o mês que perdoa e se faz passar despercebida.
E não, não é coisa que se possa simplesmente contrariar. Não é questão de força de vontade. É químico, é coisa interna do corpo. É como viver drogada com as nossas maravilhosas endorfinas 25 dias do mês, e nos outros três não ter dinheiro para a dose.
E nesses dias, está simplesmente Tudo Porra de Mal!

quarta-feira, 9 de março de 2005

Vestígio de mulher

Da mulher arrogantemente segura, já pouco resta. Da confiança e da presunção há poucos vestígios. Todos os dias a vou vendo passar, a cada dia um centímetro mais abaixo que no dia anterior. É uma gigantesca bandeira que insiste em passar à minha frente, a lembrar que tudo o que temos é emprestado, e um dia, de repente, vem alguém tomá-lo de volta.
Cada vez que aqui passa, deixa-me mais umas palavras amargas, mais um olhar avermelhado, mais uma nuvem negra, mais uma sensação de quebra, mas uma ameaça silenciosa de que lhe apetece desistir.
Eu não tenho nada inteligente para dizer. Ainda há dias eu desejava ter um pouco a vida dela. Ter um marido como ela, ter uma filha como a dela, comprar uma enorme casa nova como ela. E o carro novo, e o negócio que eu gostava de ter. De um dia para o outro a traição levou-lhe tudo.
“Eu tenho que cuidar da minha filha. Quem é que cuida de mim?”
Está no fundo. A mulher amada transformou-se na mulher abandonada. O homem amado transformou-se no homem que odeia. A filha nascida do amor transformou-se na filha que é a semente da guerra.
E ela atormenta-se - porque não pode evitá-lo - a imaginar tudo. Todos os momentos de intimidade sem ela saber, todos os enganos, todas as mentiras. A sua vida era uma fachada e ela não sabia. Vivia num cenário, e pensava que era o mundo real. A vida côr-de-rosa trocou-se por uma vida de obsessão, dos movimentos dele, do que ele diz, do que ele faz, do que ele estará a fazer, do que ele se recusa a fazer. E agora o golpe final, ter que abdicar de horas com a sua filha, para as dar à mulher que lhe tomou o lugar.
Pois é. O que tenho visto passar aqui não é uma mulher. É a pergunta sem resposta “Como é que ele pôde fazer-me isto?”. É a busca desesperada por uma justificação. É a expectativa de palavras de consolo para o que não tem consolo possível. Aquele olhar é de tal forma angustiante que não consigo fixá-lo por muito tempo.
Fico a pensar que só deve trair quem realmente nunca foi traído, porque se soubesse a dor, com certeza nunca a causaria a ninguém...
Espero que o tempo lhe passe depressa, porque é o único que relativiza, que esmorece. Apagar, acho que nunca.
E que esta bandeira sirva para lembrar que nada é garantido. E que o grande desafio da vida é, mesmo sabendo disso, continuar sempre a apostar.