segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

Quando nos atinge

O stress é hoje uma coisa tão falada e assumida no nosso dia a dia, que acho que foi transformada em doença crónica, daquelas com que pura e simplesmente se vive. Como uma verruga nas costas ou um pêlo encravado. Uma espécie de constipação mental que vem de repente e passa sem fazermos nada de especial. Hoje em dia, até já parece mal queixarmo-nos do stress do trabalho. Soa a conversa de antigo funcionalismo público, é só para nos lamentarmos e fazermos os outros pensar que temos muito que fazer.
Pois sim. Até ao dia em que começa a reflectir-se fisicamente. A falta de ar, a bola no peito, as dores de cabeça, as dores no peito, a falta de sono, a dificuldade em respirar... e por aí fora. E dizem-nos “Ansiedade. Tome um ansiolítico. E tranquilize-se.” Ah pois é, muito fácil de falar quando logo a seguir voltamos ao lugar que justamente provocou tudo isso.
Somos sempre os maiores, estas doenças de século XXI não nos afectam, são apenas aproveitadas e agigantadas pelos que não querem fazer nenhum. Até ao dia em que, subitamente, somos nós que não conseguimos respirar.
O stress existe. Era só isso que eu queria salientar.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2006

Horas da vida

Foi preciso pôr os pés num lugar daqueles uma primeira vez para perceber. O barulho era insuportável. Os cães ladram continuamente. Era um ruído ensurdecedor que vinha de trás dos muros, principalmente para os meus ouvidos pouco habituados ao som da dureza. Senti um embate tal que tive vontade de fugir dali a correr. Quando vim de lá, trouxe o peso da vergonha. A vergonha dos anos todos a apregoar a defesa dos outros animais, no quente confortável, tranquilo e, principalmente, cego da minha casa. Mesmo tendo trazido tantos da rua para lá, ao longo do tempo, não se aproxima sequer do que aquelas pessoas fazem, por trás daqueles muros. Arrancam-se do calor e do conforto, vestem as roupas mais velhas que têm, e todos os dias, debaixo do sol ou da chuva, dão horas da sua vida para cuidar e acarinhar os animais que pessoas “de bem” acharam por bem abandonar e maltratar. Sempre acompanhados daquele som ensurdecedor, do latir dos cães presos nas “boxes”.
O que me ficou daquele dia foi a sensação de ter finalmente compreendido a palavra “altruísmo”. E de ter-me apercebido que nunca realmente a pratiquei. Eu nunca tinha percebido que a coisa mais valiosa que se pode oferecer são horas da nossa vida.
Há uma gigantesca barreira entre o que defendemos e o que fazemos. Tirar do nosso tempo de felicidade e bem-estar para estar em contacto com a infelicidade, a dificuldade e a tristeza, é das coisas que quase todos os que pensam nisso adiam para sempre.
Desde aquele dia, vejo com outros olhos as pessoas que percorrem as noites da cidade a oferecer sopa e cobertores, os que acolhem crianças com doenças terminais, que ficam horas nos supermercados a convencer os outros a dar comida a quem precisa, os que têm coragem de entrar nos canis municipais e tentar salvar animais da morte certa. Todos que deixam a sua vida ser invadida por um pouco de tristeza, para poderem transmitir um pouco de felicidade. Sem medo de serem contagiados pelo lado negro da vida. São esses os que hoje mais admiro. E é pela lição deles que hoje dei início a algo que já devia ter feito há muito tempo.