segunda-feira, 22 de novembro de 2004

No dia em que eu não estava

Eu ainda não a tinha visto. Sentara-se uns lugares à minha frente, virada para mim. Mas foi quando ela se levantou que os meus olhos passaram por ela e por um instante o meu coração parou. Estremeci e tive que voltar a olhar para ela. O cabelo era diferente. Mas o rosto... parecia que ela tinha voltado a respirar, e estava ali outra vez, a mexer-se, a andar, a sorrir...
Finalmente os traços do seu rosto tinham começado a apagar-se da minha memória. E com eles desvanecia-se a intensidade das perguntas que para sempre ficaram por responder.
A sensação da sua existência levou-me de volta àquele dia. Àquela manhã em que acordei com a notícia. As palavras ainda ecoam aqui por dentro, umas vezes absolutamente silenciosas, outras ressoando tão alto que tenho que as escutar. E aquela confusão na minha cabeça. Porque naquela noite fôra ela que escolhera não voltar a ver outra manhã.
Aquela decisão – premeditada - terminou a sua vida, e trouxe à minha e à de outros as dúvidas e os receios de uma culpa que não é nossa mas que para sempre nos acompanharão. Eu também nunca percebera os convites esporádicos para o café ao fim do dia, os telefonemas inesperados ao fim da noite. “Podemos conversar?” Sinais agora óbvios de quem estava só. Mas nunca disse.
Fui eu que, ainda confusa, retirei todas as suas coisas do escritório. Fui eu que recebi os seus familiares confusos, à procura de uma razão. Uma mulher apaixonada, que vencera uma dura batalha pela saúde, com uma carreira promissora à sua frente. Porque terá tido pressa de morrer... Porque terá desistido no momento em que finalmente vencera.
Nas minhas gavetas ficaram uns papéis que ela escrevinhara para me ajudar num trabalho. Não olho para eles. Mas também não me desfaço deles. Em minha casa ficou o resto dos bombons que me trouxera de uma viagem, dentro de uma caixa que não voltarei a abrir. Na minha estante ficou o último livro que ela comprou, e que me emprestara. Quis devolvê-lo à família, como me para me livrar das provas de que ela existira na minha vida. Mas... “Tenho a certeza de que ela teria querido que ficasse com ele.” Agora guardo-o, mas não posso abri-lo. Está ali, como uma espécie de relíquia sagrada, que guarda as palavras que ela lá escreveu, num momento de felicidade.
Naquele dia, ela chegou a chorar, e partiu a chorar. Na manhã seguinte, éramos nós que chorávamos, já ela descansava. Cada um de nós passou a viver com a dúvida de poder ter sido diferente, se tivessemos feito alguma coisa naquele dia. Naquele dia em que eu não estava. E se tivesse estado? Tê-la-ia fechado comigo no escritório, como de outra vez? Tê-la-ia impedido de ir?
Mas não é assim. Há sempre um momento na vida em que vamos estar completamente sós. E é nesse momento que descobrimos se temos ou não força para viver. E naquela noite, ela soube a sua resposta.
Vê-la agora ali à minha frente outra vez foi tão assustador como revelador. Não existe uma culpa, não existe um “podia ter sido”. Mas a dúvida, essa, caminhará para sempre ao nosso lado.

quarta-feira, 17 de novembro de 2004

A sério

Às vezes dizem-me para não levar as coisas muito a sério. Ignorar em vez de matutar, rir em vez de me chocar, não reagir em vez de me zangar. Ora eu sempre me convenci que essa capacidade estava reservada a alguns, poucos, de espírito com certeza mais elevado. Mas depois de viver umas décadas, os olhos finalmente abrem-se, e à perspectiva cristalina da maioria dos que nos rodeiam, percebemos que isto de viver de olhos bem abertos encandeia demasiado, e temos que passar a usar óculos com lentes de protecção raios ultra-sério.
E assim foi. De há uns meses para cá, passei a pô-los logo pela manhã e a retirá-los só antes de fechar os olhos para dormir. Parecendo que não, isto requer alguma prática, porque os óculos nos ficam largos e nos caiem muito facilmente da cara. Por vezes dá uma vontade louca de os atirar pela janela e partir a loiça toda. Mas penso que posso dizer que finalmente aprendi o equilíbrio (não sei até quando) e de facto a coisa resulta. Relativizar. Esta é a palavra-chave. Este é o efeito destas lentes. As pessoas que fumam no bar da Unidade de Cuidados de Saúde já não me indignam com a mesma intensidade; o desespero de bajulação da colega da frente às chefias já não me choca da mesma forma, os palhaços que se atiram à nossa frente nas estradas já não me provocam a mesma irritação. Consegui eliminar assim de tudo, um pouco do factor surpresa da natureza humana, do factor choque, do factor revolta. É excelente não perder tempo de vida com tretas!
Mas... ninguém me avisou dos efeitos secundários dos óculos. Visão nublada. É que, se funciona sobre as coisas más, também funciona sobre as boas. E assim, se as coisas más não parecem agora tão más, as boas também parecem ter perdido um pouco o brilho... Pois é, se aprendemos a ser controlados, isso reflecte-se em tudo. Estas cabeças não são assim tão programáveis. E quando agora chego a casa e ouço a pergunta “Então, que aconteceu hoje no teu dia?”, os meus lábios pronunciam “Nada de especial.” Relativizei.
É, pode ser tranquilo viver no equilíbrio. Mas não tem piada nenhuma. Pode ser o meu pequeno mundo, sem grande interesse à humanidade, mas tinha intensidade. E tenho medo que, ao viver assim, as minhas melhores peças, as que me faziam rir à gargalhada ou chorar como um bebé, enferrugem, e um dia que eu queira, não consiga voltar a pô-las a funcionar.
Talvez eu prefira rir a valer de vez em quando do que nunca me zangar, ou nunca chorar. Talvez prefira permitir que a vida continue a surpreender-me, ainda que muitas vezes pela negativa. Já que aqui estou, não será afinal melhor deixar-me viver acordada, e não anestesiada?
Talvez ainda venha a mudar de ideia. Ou talvez ainda venha a aprender a usar os óculos só quando é preciso, num tira e põe constante. Embora não creia que já tenha conhecido alguém realmente capaz de o fazer.
É. Aposto que um dia destes os óculos ainda vão fora. Antes que me esqueça de viver. O mundo baço não tem piada nenhuma.

segunda-feira, 1 de novembro de 2004

Linha entre dois pontos

O comboio galgava as terras, como um corte longitudinal no mundo, intrometendo-se em tudo, atravessando campos e bosques, aldeias e cidades, dividindo umas, unindo outras, experimentando em poucos minutos chuvas torrenciais e céus de nuvens brancas e cor-de-rosa. Criando ventos que abanam os ramos quase nús das árvores, levantam as abas das gabardinas dos homens e revolvem os cabelos das mulheres. Fazendo ladrar os cães, parar os carros, acenar as crianças.
E aquilo tudo era para ela. Lá dentro, ela assimilava o mundo em instantâneos. Uma mota numa estrada paralela aos carris, um quintal desarrumado, vacas num pasto, a casota de um cão, um campo verde pintalgado de ovelhas, os tons luminosos de um arco-íris, gente escondida debaixo de chapéus de chuva, a senhora da passagem de nível de bandeirinha erguida. Um substituía o outro em décimos de segundo, a maior parte sem a possibilidade de ela guardar na memória.
Ela atravessava o mundo naquela cápsula veloz, quente e confortável, o seu olhar deslizava pelas breves imagens que passavam, mas a sua memória trabalhava energicamente, trazendo-lhe à lembrança pequenos filmes de momentos que já tinham passado juntos, coisas do mais belo que já vivera, que a tinham feito flutuar uns centímetros acima do chão. E ainda faziam.
Agora projectava os momentos passados nos momentos futuros. Às vezes olhava para o relógio quase minuto a minuto. A cada um, estava um minuto mais próxima dele. E saboreava aquela expectativa. Por vezes tranquila e feliz, outras com uma euforia que lhe vinha do centro do peito e lhe dava vontade de cantar em voz alta.
Era assim a distância. Uma espécie de dor feliz. Porque é uma dor que nasce da existência de amor. E à medida que encurta a distância, aumenta o prazer daquela dor.
Finalmente o comboio começou a abrandar. Entrou na estação já quase tão devagarinho como o passo de um homem. Ela encostou o nariz ao vidro, como uma criança, na ânsia de o ver. E por entre as grossas gotas cerradas da chuva de Outono, ela vislumbrou-lhe o sorriso. E viu o seu próprio reflexo no vidro sorrir por entre a alegria dele.
Mais uma vez, sem nunca a desiludir, e por entre a tempestade, o comboio tornara a traçar aquela linha que os liga. E os pontos tornaram a unir-se. Missão cumprida.