segunda-feira, 26 de setembro de 2005

Eu outro

Uma das coisas que gosto em ler um livro é a possibilidade de pôr a minha vida em espera. Sento-me encolhida algures, aponto o comando lá para fora e carrego na “Pausa”. Abro o livro e passo a viver nas páginas. A vida passa a acontecer ali, por entre as letras. E já fui tanta gente. Já morri tantas vezes, já amei tantas vezes, já tive medo, já fui corajosa, criminosa e heroína, já fugi, já lutei, já descobri, já criei. Encontrei-os tarde, os livros. Antes sonhava que era outras gentes, via-me a mim mesma ser outro. Mas não tenho que esperar pela noite e pela imprevisibilidade dos sonhos. Em cada estante da livraria está uma vida diferente para mim. Em cada molho de páginas outros eu. Em cada livro essa capacidade divina de me fazer renascer, ainda que por instantes. E até posso escolher como.

quinta-feira, 22 de setembro de 2005

“Santa’s little helpers”

Fascina-me a ideia de que pode haver em mim a capacidade inata de criar um ser humano. Deixa-me perplexa o facto de que poderei eventualmente construir um. E sem ter que pensar nisso uma única vez, sem ter que dar conscientemente uma única indicação. Um braço vai para aqui, outro para ali, dois olhos, um nariz, uma boca, agora aqui vou moldar um rim, ali um coração a bater, sangue, veias, artérias, órgãos, mãos, pernas, pés, tendões, e ossos e músculos a segurar isto tudo. Toda esta informação veio comigo. Existe cá dentro. Mas eu não sei fazer nada disso! Nunca passaria num exame sobre o assunto. Como é que você dá informação às células que vão constituir o cérebro do bebé? Não faço ideia! Quantas células são necessárias para construir um útero? Não sei, não sei! Mas de alguma forma elas lá recebem a informação e tentam alcançar os seus lugares. É muito estranho ter uma capacidade destas, chegar ao mundo com toda esta programação que não se controla. Ah, e se nos lembrarmos de construir uma menina, ainda temos que lhe passar toda essa informação a ela, para que ela um dia venha a fazer o mesmo!
Depois vai-se à ecografia, olha-se para o pequeno televisor e é como se se estivesse a assistir a um filme dentro da própria barriga, mas feito por outro realizador qualquer.
São privilégios de Pai Natal, devemos ter os nossos próprios duendes atarefados a trabalhar cá dentro, sem descanso, 24 horas por dia, durante nove meses. E depois anda-se por aí, com um ser humano na barriga, que come, que se mexe, e que aumenta de tamanho dentro da barraquinha que armámos para ele. Sem saber como. Sem manual de instruções. E como se não bastasse, no fim de tudo, de repente ainda sabemos fazer leite, que nos sai pelas mamas!
Como é que eu faço coisas tão complexas, se nunca aprendi?? A mim deixa-me perplexa.

quarta-feira, 21 de setembro de 2005

O grande mistério descoberto

Finalmente sei porque é que quando alguém morre e vai para o céu, nunca mais volta. É que depois de ter conhecido o paraíso, quem raios quer voltar para o inferno?

quinta-feira, 1 de setembro de 2005

Que é isto do papel?

No início era a Certidão de Nascimento. Logo a seguir o Boletim de Vacinas e o Cartão da Caixa. E durante vários anos é só isso, e nem sequer temos que ser nós a carregar com eles. Mas depois vem o Bilhete de Identidade, os cartões da Escola e da Universidade, do Clube Desportivo, do Clube de Vídeo. O Cartão de Eleitor, o Cartão de Contribuinte e os Recibos Verdes, a Carta de Condução, o Registo de Propriedade do Carro, mais o papel do Seguro do Carro, e o da Inspecção, e os Selos. Selo do Seguro, selo municipal, selo da inspecção. O Cartão do Seguro de Saúde, do El Corte Inglês, da Sapataria, do Health Club, o do Emprego, o dístico do carro para entrar no Estacionamento, os cartões de visita...! E depois as papeladas. Do IRS, da casa, da água e da luz e do gás, das contas no Banco e dos empréstimos, e dos seguros, e dos casamentos e dos divórcios, das heranças, dos nascimentos dos filhos... e por fim, tudo acaba como começou, com uma certidão. A de óbito. Aí vingamo-nos e ainda deixamos papelada para serem os outros a tratar.
Ainda me lembro do momento exacto em que me apercebi. A nossa vida é papel. Papel, papel e mais papel. Tenho papelada, logo existo. Tive saudades de ser criança e não ser ninguém. Quando a única papelada para organizar eram os desenhos a lápis de côr. Mas é assim, crescer é acumular papel. Lamentavelmente, não necessariamente do verde.