quarta-feira, 16 de fevereiro de 2005

De joelhos

Desde sempre tinha ouvido falar daquele sítio. Em pequena, os meus Padrinhos tinham-me dado um livrinho cheio de desenhos de três meninos pobres, mirando extasiados uma mulher santa, sobre a copa de uma árvore, com nuvens aos pés. Ao longo do tempo fui ouvindo da fé, dos peregrinos, das promessas, da afluência dedicada, das datas "especiais", as transmissões televisivas. Até ao dia em que eu própria vi, com os meus olhos.
E o que eu vi... não foi um lugar de fé, de altruísmo, de dedicação desinteressada, de abnegação. Foi um lugar de troca, uma praça do comércio dos desejos, dos pedidos, dos medos. Por entre a chamada "fé", uma espécie de ritual pagão, a um Deus apreciador do sacrifício e do sofrimento dos homens. Um Deus que, claramente, não era o meu.
O que mais me marcou não foram sequer as pessoas, que se arrastavam de joelhos, estranhamente crentes que fosse aquele um agradecimento que Deus gostasse. Foi o facto de que há um caminho em mármore no chão, feito especificamente para aquela bizarra tarefa. São estas pessoas, é esta sociedade a mesma que censura aqueles homens nas Filipinas que acham por bem crucificar-se na Páscoa. Não vejo a diferença. Sofrimento inútil é sofrimento inútil, qualquer que seja a intensidade da dor.
Se existe um Deus, ele não pode ser assim. Deus não pode estar onde estiver, satisfeito por uma dor que não traz bem algum ao mundo. Se é suposto dar de nós para agradecer uma dádiva, porque não dedicando tempo aos outros, fazendo trabalho de voluntariado, dando companhia aos esquecidos nos lares, lutando por tantas causas que bem precisam da nossa perserverança... Há tanto a fazer neste mundo, tanto que precisa do nosso tempo e da nossa abnegação. E escolhe-se ir arrastar-se de joelhos. Não vejo porque tem a gratidão de se exprimir em dor. Em vez de em utilidade. E em bem.
E as promessas. Aí, colocam-se os seres humanos ao nivel de Deus. "Se Deres um emprego ao meu filho, eu prometo ser melhor, eu prometo pôr dinheiro na caixas das esmolas todos os dias durante um mês, eu prometo fazer isto, eu prometo fazer aquilo..." Sermos melhores não deveria ser à partida a nossa obrigação? Há coragem de dizer a Deus que só fazemos, só damos, só agimos, se Ele nos conceder o que pretendemos?? Compreendo que isto nos deixe sem moeda de troca. Não há nada que possamos oferecer em troca de ajuda. Há. Termos sempre tentado ser melhores, e não apenas naquele momento em que nos interessa.
Custa-me esta interpretação de um Deus. Age-se como se ele não estivesse um pouco dentro de cada um, mas como se fosse uma entidade exterior, com quem tudo se troca, com quem tudo se negoceia. É um mercantilismo da fé, a que muitos se vendem, à procura do seu próprio e exclusivo bem.
Deus não pode ser um Deus castigador, apreciador do sacrifício inútil, valorizador da dor pela dor. Mas deve ser por vezes um Deus triste.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2005

Salto de Fé

Já lá vão uns anos, vi pela primeira vez o filme “Indiana Jones e a Última Cruzada”. Ficou-me aquela imagem dele, ao aceitar um dos maiores desafios para alcançar o Santo Graal. O Salto de Fé. À beira do precipício, Indy deu um passo no vazio, crente de que haveria solo para o receber. E quando deu aquele passo, o caminho revelou-se à sua frente. Na total ausência de qualquer educação religiosa e no conforto de quem tem idade para achar que o futuro será tudo o que quiser, não fiz daquilo qualquer interpretação. Há dias, tanto tempo depois, veio-me à memória aquela cena. Afinal, parece que há um momento na vida em que também nós temos que escolher dar ou não o Salto de Fé.
Não se vive para sempre. Se calhar é por isso que este é um salto tão difícil. Mas também devia ser a falta de tempo que nos faria saltar. Há gente neste mundo que salta. E continua a dar o salto sempre. Crente num solo invisível que os vai segurar. Mas a maioria não. A maioria alcança uma plataforma minimamente confortável e deixa-se ficar quietinho, sem fazer ondas, sem estremecer a estrutura, sem sequer se pôr em bicos dos pés. Não quer saber o que está para a frente, para cima, para os lados. E muito menos o que pode estar ainda dentro de si. Prefere nunca mais pensar nisso. Ou prefere obrigar-se a aceitar que nunca saberá. Ou a convencer-se de que ali é tudo o que lhe é permitido. Porque saltar é um risco, e pode cair-se numa plataforma ainda mais abaixo. Ou morrer na queda.
O meu corpo sente impulsos cada vez mais fortes, cada vez mais frequentes, para saltar. A ideia assalta-me o pensamento. Mas prendo-me ao chão. Porque aqui neste lugar estou segura, tenho o essencial. Será ganância, querer saltar para a plataforma que vislumbro à minha frente? Para os lugares que imagino mas não sei se existirão para mim? Ou pelo contrário só viverei realmente se der este salto de Fé? Afinal, descubro que a Fé em nós mesmos é a mais difícil de todas. E eu vejo-me sem coragem para saltar, não sei se acredite que haverá um chão invisível por baixo dos meus pés.
Ainda não sei porque razão existo, ainda não sei se fui feita para saltar, se fui feita para ficar aqui quietinha. Só vou saber se saltar. E a vontade é tão grande. É tão grande o desejo de me colocar o desafio. E de o aceitar!
O medo acaba por ser sempre a base de tudo. Ou o não acontecer de tudo. Se eu não vivo para sempre, por que raio ter medo? Porque raio não quebrar com tudo, deixar os receios para trás e agarrar as possibilidades de viver? Porquê acreditar que se cai no vazio? Porquê ser mais um sem Fé. Em si mesmo.